sábado, 25 de outubro de 2008

Eleições municipais 2008

Durante dois anos boa parte das pessoas ausenta-se da política institucional, isto é, dos assuntos relativos à gestão governamental, disputas partidárias etc., só dispensando alguma atenção a ela no periódico das eleições. Eleições vão e retornam, e nós voltamos à política, um pouquinho, nestes intervalos bienais, para participar do grande evento público em que transferimos nossa parcela de decisão política aos candidatos aos cargos de dirigentes autorizados.

Aqui me contentaria com dois argumentos principais: um tratando da objetividade da disputa do segundo turno, abstraindo da diversidade de considerações que podem ser feitas a respeito da superficialidade do momento em que uma remota e fragmentada idéia de racionalidade política mescla-se à história de vida de cada eleitor para configurar um afeto positivo ou negativo em relação à figura pública de um candidato. Outro mostrando que o desprezo e esquecimento da política tradicional em nome de formas criativas e alternativas de afirmação subjetiva, a via preferencial da relação dos mais jovens com a política, reforça a tomada do controle político institucional por aqueles que vivenciam o dia-a-dia da política.

A política institucional participa cada vez menos de nosso imaginário e das nossas conversas, ainda que continue fazendo parte de nossas vidas, como sempre fez. A crise não é propriamente da política, mas da representação política. Não nos sentimos representados, mas as decisões tomadas na esfera jurídica da política continuam a nos afetar. Esta política institucional nos aparece majoritariamente manifestada na tela de televisão ou nas páginas dos jornais e revistas. Nesses dispositivos de comunicação acompanhamos, distantes, as movimentações das extremidades das forças políticas, em uma abordagem no mais das vezes tática, em que a dimensão ética perde espaço para uma ambientação de jogo, numa discriminação entre “os que saem ganhando e os que saem perdendo” da conjuntura de determinado acontecimento político. Na mídia podemos verificar uma leitura elitista do fenômeno político, visto que é transmitida a idéia de que ele é próprio das ações dos líderes dos partidos, instituições governamentais e empresariais, desprezando outros âmbitos e perspectivas, como as organizações populares e movimentos sociais.

Em véspera de eleição, como os últimos dias, esta política se materializa nas ruas e diante de nossos olhos. Bandeiras se agitam, rostos maquiados e repletos de intervenções digitais sorriem artificialmente, num espetáculo curioso que passa despercebido pela maioria das pessoas, que o rejeita e a ele sente ojeriza, não sem razão. Vemos os mais pobres pagando mico, vestindo a camisa do candidato, distribuindo santinhos, recostados em cartazes promocionais de partidos e candidatosnos sinais de trânsito, alheios como a remela de seus olhos, ausentes de espírito e presentes de corpo.

O fenômeno político, ao tomar as ruas, nos permite expressar uma opinião com alguma dignidade, isto é, esse cenário da eleição permite que façamos aquilo que, se feito fora de período eleitoral, produziria um efeito negativo, interesseiro, não afinado com o espírito de nosso tempo. Exemplificando, o que sentimos quando, fora de período eleitoral, vemos alguém defendendo enfaticamente determinado partido ou líder político? A primeira reação é de desconfiança: “o que se está ganhando com isso?”. Na maior parte dos casos, ficamos sabendo que este defensor trabalha onde tal partido ou candidato possui relevância, ou está envolvido, direta ou indiretamente. Assistimos a um filme, vamos a um show de rock, e o artista interrompe o show para louvar algum candidato. Ficaremos incomodados, quando não enojados. Esse tipo de espaço político só pode ser acessado, com positividade performativa, se estiver voltado a temas universais e necessariamente excludente de sujeitos diretamente interessados; temas como a fome, a África, a Aids, a violência, e daí em diante. Em véspera eleitoral, entretanto, os temas universais e politicamente corretos perdem espaço discursivo para defesas fragilmente embasadas, impregnadas do “ouvi dizer” do senso comum e de um emocionalismo desprovido de consistência argumentativa. Normalmente, as manifestações deste gênero, voltadas a candidatos e partidos específicos, são reprovadas pelos “mais instruídos e com melhor gosto”. Torcem o nariz para isso, exceto em período de eleições. Nesse breve intervalo nos permitimos, ainda que com cautela, alguma opinião que nos exponha e nos coloque vulneráveis ao tipo de julgamento que se faz àqueles que levantam bandeiras e não temem os prejuízos de uma adesão declarada a grupos políticos reais, que ao contrário das manifestações voltadas a um universal dificilmente criticável, se fragilizam ao defender pessoas de carne e osso, não apenas susceptíveis a equívocos como mergulhadas no imediatismo das ações de natureza eleitoral.

Política é uma das coisas mais complexas que existem. As variáveis que a compõem são múltiplas, há fatores de todas as ordens influindo no processo, fazendo do debate mais amplo algo que naturalmente opõe-se ao binarismo da eleição, sobretudo em segundo turno. Como está em jogo uma disputa de votos, e há um poder real em disputa, deixamos esse binarismo burro comprimir todas as dimensões da política numa forma unidimensional, chapada, propositalmente excludente da variação de matizes ideológicos. Isso equivale a, no momento do voto, decidir por um dos lados. Essa atitude “afirmativa” deixa o debate político simplificado em um vale-tudo de argumentos. Isso é da eleição. A campanha em segundo turno acirra, simplifica, deixa as coisas claras. Aí talvez se fale verdadeiramente de política, já que aparece o temperamento político essencial de cada um que, por mais desinteressado ou niilista, revela sua ideologia. Esse substrato ideológico, mesmo diluído, fica exposto no segundo turno.

As eleições municipais de 2008 no Rio começaram mornas, marcadas pelo desinteresse da população. A “esquerda” se apresentou dividida, desestruturada pelos prejuízos do processo de adequação do governo Lula às diretrizes do capitalismo global. A popularidade assombrosa do presidente não parece ter se estendido aos partidos aliados, nem mesmo ao PT. É como se o carisma presidencial tivesse colhido todos os frutos desse amplo processo de adaptação à realidade dos trâmites de governabilidade, enfraquecendo a marca partidária. Neste cenário, as projeções apontavam para uma vitória tranqüila do senador Marcelo Crivella, candidato articulado às altas esferas governamentais e já conhecido do grande público. No decorrer do processo eleitoral, a força da situação (Lula/Cabral) abandonou o candidato petista Alessandro Molon para se unir em torno da candidatura de Eduardo Paes, com vistas à composição com o PMDB na chapa da situação em 2010.

Paes tomou a dianteira nas pesquisas de intenção de voto, parecendo naturalmente preencher os requisitos do perfil de prefeito, há mais de uma década personalizado na figura de Cesar Maia, padrinho político do candidato e atual desafeto. Representa a vitória das amplas articulações entre as forças políticas do Estado, unindo o PMDB do governador Cabral e do presidente da Alerj Jorge Picciani ao apoio de um presidente capaz de superar as duríssimas críticas de Eduardo Paes na CPI que investigou os escândalos de seu governo na crise de 2005, inclusive com acusações pessoais ao seu filho. A ascensão de Paes parecia inabalável, não fosse o ingrediente imprevisível que costuma dar sustos históricos e confirmar a frase de Tancredo de que “política é como nuvem, muda a toda hora”. Quando os chefões mexem seus pauzinhos e agregam esforços por uma candidatura, como ocorreu aqui no Rio com Paes e em Belo Horizonte em torno da candidatura de Márcio Lacerda, não raro surge uma polaridade reativa confrontando esse núcleo de poder desejoso por determinar a vontade do povo. Na capital mineira, uma inédita composição entre o aparentemente invencível governador Aécio Neves e o bem avaliado prefeito Fernando Pimentel, mais que mostrar a viabilidade de coligação entre adversários históricos (PT e PSDB), teve a audácia de colocar em posição de absoluto favoritismo um candidato desconhecido do público, o milionário empresário socialista Márcio Lacerda. Tudo parecia acertado e a confiança em uma vitória era total, não fosse a polaridade reativa produzida por um povo sem rosto, formado por multidão de multiplicidades manifestante de uma vontade de mudar os rumos acertados pelos chefões locais. O jovem deputado Leonardo Quintão foi ao segundo turno e é franco favorito à sucessão de Pimentel.

No Rio de Janeiro ocorre fenômeno semelhante. O deputado Fernando Gabeira cresceu na reta final e superou os favoritos Jandira e Crivella para a disputa com os caciques em torno do nome de Paes.
A chegada de um “outsider” ao segundo turno das eleições municipais deste ano esquentou o clima e conferiu emoção à disputa, acirrada como há muito não se via para a prefeitura de nossa cidade (eis o germe da espetacularização da política inoculado no meu discurso). Molon, humilhado pela troca de última de hora do apoio do presidente e do governador, que o preteriram por Paes, teve uma votação modesta. Chico Alencar e Jandira pagaram o preço pelo discurso comunista desconectado da realidade. Jandira ao menos pode comemorar uma vitória: campeã do retoque digital. Bombardeada pelo photoshop, a foto de seu cartaz principal a apresentava como figura etérea, mais próxima de um fantasma que da ativista de carne e osso que entregou oito anos de mandato no Senado Federal para o vilanesco Dornelles, com a declaração infeliz, poucos dias antes do pleito, de que era favorável ao aborto.

Gabeira associou-se a forças questionáveis e construiu a ponte para o segundo turno. Sua trajetória até aqui é interessante sob diferentes abordagens. Uma delas refere-se ao “devir político” do candidato (lembrando que o que sei e falo de Gabeira tem base na tradução midiática deste personagem a que tenho acesso através de dispositivos de informação). Com um passado radical, os anos passaram e uma discreta atuação parlamentar marcou a posição dele na arena política. Íntegro e coerente em suas posições, era aquele cara que não botava a mão na sujeira, não participava das costuras fisiológicas, ao preço de certo imobilismo em seu mandato de deputado federal, que eleição após eleição ia minguando no número de votos que recebia.

Após pegar em armas e radicalizar a experiência militante, Gabeira parecia ter se acomodado na parte (predominantemente discursiva) que lhe cabia na Câmara, dando seu recado e seguindo com a vida. Tenho a impressão de que Gabeira pôde viver um pouco mais tranquilamente neste período, quase como uma cara normal, com seu rosto enrugado de quem já passou grandes perrengues, curtido como couro de jegue, podendo apresentar um sorriso de tranqüilidade, apesar de tudo. A política teria passado ao segundo plano na vida dele, resignado com o fim da utopia esquerdista decorrente da chegada do PT ao governo federal. Vale ler, deste período, texto sobre seus colegas congressistas, publicado aqui na Tribuna Eletrônica um pouco abaixo, onde Gabeira nem sonhava em ser prefeito do Rio de Janeiro.

Nas últimas eleições Gabeira foi o deputado federal mais votado do Estado, o que lhe conferiu cacife para disputar a prefeitura. O fato político que parece ter sido responsável pelos 293.057 votos foi o embate exaustivamente veiculado que teve com o então presidente da Câmara Severino Cavalcanti, em uma demonstração da força da chamada videopolítica.

Aquele que escreve baseado somente na videopolítica, no entanto, corre o risco de receber como resposta aos seus argumentos que não está por dentro do que acontece nos embates jurídicos da arena política. A avaliação de espectador passivo da política através da grande mídia suscita o argumento: “na verdade não foi bem assim, isso aí foi lido nos jornais”. Há uma parte da discursividade política, desconhecida do grande público, cujos argumentos fazem referência a projetos de lei, às marcações de posição na teia jurídica da política. Neste ponto da discussão, os militantes utilizam a interface da política com o direito, para citar projetos de lei e atuação parlamentar daquele que estejam defendendo ou acusando. Os militantes do grupo de Gabeira dirão que ele não teve atuação morna e que esteve o tempo todo nas trincheiras da Câmara. Tanto melhor que tenha sido assim, mas insisto em apontar a fragilidade da base midiática que sustenta meus argumentos.

Eduardo Paes me transmite a incômoda sensação de não disfarçar a ausência de comprometimento com qualquer coisa que não seja o seu próprio umbigo. Este traço não apenas me salta aos olhos analisando sua trajetória política como parece estampado em seu corpo, fala e gestualidade. Ele alia a empáfia dos tecnocratas com a malandragem dos políticos profissionais. Nada tem de tecnocrata; começou na política como síndico de condomínio de luxo na Barra, como seu padrinho Cesar Maia. Viu desde cedo a política como forma de ascensão social. Mudou de partidos várias vezes, surfando sempre a melhor onda. Na crise do mensalão utilizou a CPI como palco de promoção, atacando violentamente o presidente Lula, a quem chamou de chefe de quadrilha, além de ter sido opositor de Cabral e Jandira, a turma com quem está agora.

Eduardo Paes é um carreirista, representante da nova geração de políticos profissionais que não vivem para mudar a política, mas mudam para viver da política. É preciso que fiquemos atentos aos ares do tempo, que indicam que a manifestação política hoje está circunscrita aos gestos de individualidade e criatividade, e que devemos dar as costas ludicamente ao espetáculo pérfido da política institucional. O preço desta atitude é caro. A política se despolitiza e se atrela ao poder econômico. Uma geração de xerifes emerge dos grotões para controlar as comunidades através de métodos antiquados. Nos grandes centros, travestido de “técnico em política”, o carreirista usa seu descomprometimento como neutralidade, e galga os cargos da hierarquia pública, construindo patrimônios para suas famílias e aparelhando os quadros estatais, deixando de fazer o melhor para a cidade. Fica-se repetindo que a política acabou, enquanto esses caras se apoderam do dia-a-dia de uma política que não apenas existe para eles, como para todos nós.

A política dos políticos perde terreno no afeto e no discurso das pessoas. A interface do cidadão comum com esse meio tem sido marcada pela figura do escândalo de corrupção, sob o signo da desconfiança. Para nós, é claro que hoje a atitude política está mais na arte, na criação de linguagens e modos de vida, do que nas pendengas tecno-burocratizadas que a canalhocracia jurídica protagoniza na cena pública. A política agora está no que vamos fazer das nossas vidas, no sentido estético que fazemos e queremos fazer do mundo. Essa atitude, aliada à falta de tempo crônica que assola a vida moderna, potencializa o desinteresse na canalhocracia jurídica, restrita aos políticos profissionais, jornalistas e publicitários de renome, homens de negócios, e perifericamente com a militância organizada.

A atitude política da arte, o pensamento e a criação de novas formas de subjetividade estão no topo de nossas cabeças, porque cada vez mais nos comportamos como seres privados. O espaço público, neste contexto, é controlado por uma nova classe política, completamente instrumental, que surge no ocaso da militância intelectual. Os dois mandatos do Lula tiveram essa característica, goste-se dela ou não. Grupos políticos que se formaram no marxismo transcendente conquistaram o controle imanente da máquina estatal, com o processo de democratização da corrupção. Os neotucanos vociferam que se era para fazer isso era melhor ter deixado a chave do cofre com o PSDB; os sobreviventes do orgulho petista falam que se governou para os mais pobres, que muitos avanços foram dados, que houve esforço adicional para “arrumar a casa”, chegando à pieguice de argumentos como “aprendemos com os nossos erros”.

Tudo isso não passa de polaridade política, em sentido menos ideológico que tático, e não importa, não creio estar aí a parte interessante da política.

A herança histórica, em termos de avanço em direção a uma maturidade política, é de que não é possível dar conta da realidade com o discurso pré-2002, de condenação da política de alianças. No primeiro turno dessas eleições municipais falou-se com perplexidade dos acordos, coalizões, apoios, mudanças de lado de última hora, como se isso fosse novidade. Estamos em 2008, e aprendemos a lição já no primeiro mandato do Lula, em 2002. Não estou fechando os olhos para isso, nem deixando de criticar e deplorar, mas insisto que isso não pode embotar nosso discurso, que é nossa maior ferramenta política.

O cenário da eleição de domingo não nos deixa cair na ilusão do purismo político. Foi quebrada a racionalidade das bandeiras e projetos unificados, que congela a política numa imobilidade em nada parecida com a realidade da fragmentação dos sentidos ideológicos e o reordenamento da energia política numa cadeia cada vez mais enredada e complexa, onde grupos movimentam-se distanciados dos grandes fins programáticos do passado.

De um lado o candidato do PMDB, apoiado pelo presidente Lula, pelo governador, pela socialista Jandira. Ex-aliado de Cesar Maia, ex-tucano combatente de Lula a vida toda e de um Cabral que antes da fama era o Toninho Malvadeza da Alerj e aliado do casal Garotinho, cercado de capangas lombrosianos (André Luiz, Paulo Mello, Picciani), grupo que infernizou a vida de Lula e sempre foi combatido por Eduardo Paes.

Do outro Gabeira, petista histórico, apoiado pelo PSDB, aos 67 anos, vivendo o maior momento político de sua vida. Foi comovente vê-lo frágil no último debate, entrando na falácia eleitoral, na conversa fiada limitada pelo roteiro politicamente correto questionável da Rede Globo, da discussão de “temas” como transporte e segurança. Os dois candidatos falaram de forma constrangida de temas que desconhecem e não fazem parte de suas realidades. O desejo da população era de ver um debate político de verdade, mas a Globo na sua caretice não colabora, isso é muito difícil de mudar. Colocar dois homens políticos para falar alguns minutinhos sobre os temas de interesse da população é esvaziar a latência propriamente política que deveria ser discutida. Esse modelo raso de debate, próprio das especificidades televisivas, serve para deixar a política nua, evidenciando o discurso como terreno pantanoso em que o que está em jogo se reveste do politicamente correto para simular democraticamente uma disputa que nunca deixará de ser humana, no seu sentido mais precário.

Gabeira se vê diante do desafio de ser a cara nova após um reinado de 16 anos de Cesar Maia, de tornar-se peça de importância no xadrez da sucessão em 2010, enfim, de voltar ao centro da cena política, tendo ela novamente como a razão de sua vida. O Gabeira armado possivelmente não imaginaria que hoje estaria sob tal temperatura política. Creio que a política tenha renascido na vida de Gabeira, e a energia deste acontecimento poderá ser utilizada em uma gestão inovadora da nossa cidade.