quarta-feira, 18 de maio de 2011

A Náusea


Como gostaria de lhe dizer que o enganam, que ele faz o jogo dos importantes. Profissionais da experiência? Arrastaram suas vidas num torpor, meio adormecidos, se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos ao acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De quando em quando, apanhados num rodamoinho, se debateram sem compreender o que lhes acontecia. Tudo que ocorreu à sua volta começou e terminou fora de sua vista; longas formas obscuras, acontecimentos que vinham de longe roçaram-nos rapidamente e, quando eles quiseram olhar, tudo já terminara. 
Bonito

E depois, por volta dos quarenta anos, batizam suas pequenas obstinações e alguns provérbios com o nome de experiência, começam a se fazer de distribuidores automáticos: dois níqueis na fenda da esquerda e eis que saem anedotas embrulhadas em papel prateado; dois níqueis na fenda da direita e recebem-se preciosos conselhos que grudam nos dentes como caramelos pegajosos. Também eu, por esse mesmo processo, poderia ser convidado pelas pessoas e estas se diriam, entre elas, que sou um grande viajante diante do Eterno.

Sabido
 




terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Cenas da vida na província

Há anos admirador da obra do sul-africano John Maxwell Coetzee, só agora li Infância, o primeiro volume da trilogia Cenas da vida na província, após ter lido os dois seguintes, Juventude e Verão, que completam esta ficção autobiográfica que apresenta o personagem, de mesmo nome do autor, em três momentos diferentes de sua vida. Como na viagem de Caim do último ato de criação de José Saramago, seu colega de Nobel, o personagem do autor é mostrado em tempos distintos, ao longo dos três volumes.
Em Infância, entre outros pequenos dramas passados na cidade de Worcester, África do Sul, acompanhamos o mergulho do menino na introspecção, na descoberta de si mesmo como diferença no mundo, da dura necessidade de negociação com o meio e todos os problemas decorrentes, enfrentados por qualquer criança. Sua dificuldade em retribuir a incondicionalidade do amor materno; seu pai preguiçoso e ineficiente; seu medo de se relacionar com os meninos africânderes (os Coetzee, apesar da origem africânder, falam inglês em casa e não possuem raízes na cultura africânder). Os fantasmas do menino são como ecos da segregação, que é o pano de fundo desta narrativa que, aparentemente despretensiosa, sugere outro tempo. Um tempo de recusa, de espera, de desconstrução. Tempo preenchido pela sucessão de atos de amenidade, necessária à manutenção das relações de alteridade, em termos mais ou menos civilizados. No segundo volume, Juventude, o jovem Coetzee, solitário e complexado, vai trabalhar como programador em Londres. Acompanhamos o seu envolvimento com a poesia e a literatura, seus momentos de melancolia, seus questionamentos, sua dificuldade em se relacionar com as mulheres, sua solidão.

O último volume, Verão, é o mais interessante e esquisito. O consagrado escritor J. M. Coetzee já faleceu e sua vida está sendo pesquisada por um biógrafo, que entrevista pessoas que dela participaram em diversos momentos, principalmente mulheres. O personagem vai sendo revelado através de comentários soltos nas entrevistas, em sua maioria depreciativos da sua pessoa e às vezes até de sua obra. A identidade investigada, tecida por diversas vozes, surge fragmentada para o leitor. Apesar de seguir uma tendência em moda na literatura contemporânea — a exploração das possibilidades criadas pela queda da barreira que separa a ficção da realidade —, o romance não deixa de ser inovador. Pode sugerir uma ironia com o culto às celebridades, com o sistema que vampiriza as vidas e personalidades dos notáveis. Alguns dos diálogos entre o biógrafo e as entrevistadas são bem interessantes, maracados por silêncios, mal entendidos, antipatia.

Não há qualquer informação sobre a trajetória que o autor seguiu rumo aos salões da consagração artística, do sucesso de público e crítica. A questão da sua fama e de seu sucesso não é tocada. Paira como uma sombra, quase irreal, existindo apenas como a razão de ser das entrevistas. E os entrevistados demolem, um a um, a possível expectativa de uma construção de grandeza, de talento, de sabedoria. Vemos um homem falho e algumas vezes até mesmo fraco, retratado pelo olhar de pessoas com quem teve relações que possivelmente não terminaram bem. A parte final do romance resgata a costumeira fórmula de narração em uma pseudo terceira pessoa, que destila um sentimento de dureza e perplexidade diante dos conflitos da vida.


Ao relatar seu cotidiano abafado, apagado, marcado por pequenas precariedades — os fatos desagradáveis do nosso amontoado de dias passados, que passam e ficam amassados em um canto qualquer de nós — o autor não demonstra preocupação em trazer o leitor para junto de si. A simplicidade aparente da superfície do seu texto encobre conflitos e repressão. Como se uma camada de silêncio separasse o texto do papel, espaços vazios por onde a narrativa delineia seus contornos, dobras e nós, e para onde ela escoa quando terminamos as corrosivas páginas finais de Verão.

Coetzee escolhe as palavras com cuidado, e delas extrai o sentido mais preciso, ordenando-as da maneira mais adequada, na confecção de um texto extraordinariamente enxuto, cuja outra face é a do indizível, onde as palavras “nada podem dizer, pois nada mais são do que as grades negras de uma prisão onde o espírito grita para ser ouvido”1. O autor não se propõe a recriar este domínio, ou a buscar uma transfiguração radical da linguagem. Sua escrita é em uma linguagem pobre, rarefeita. Admirador dos mestres russos, com eles talvez tenha aprendido a aplicar a força nas palavras, aproveitá-las da forma mais racional e racionada. É como se as palavras não fossem abundantes, mas cultivadas com trabalho duro no terreno pobre da linguagem, seco como as paisagens de seus livros. Com sua pena faz pesar a intensidade nas palavras, extraindo delas o que a linguagem não pode alcançar. Nada parece saído de impulso, não há aleatoriedade, o texto nasce do cultivo na aridez. Nas frases curtas, nos fechamentos de capítulos, fica a impressão de que não havia outra forma de expressão, como se nenhuma outra ordem das palavras fosse possível.

A visão do autor sobre o mundo é tão implacável que ele parece tentar suavizá-la, livrá-la o tanto quanto possível de marcações ideológicas. A realidade de seu mundo é concreta demais para devaneios linguísticos ou soluções variantes do niilismo. A negação e a demolição cedem lugar aos ecos de culpa e temor diante da inevitabilidade do futuro, no vazio do espaço.

Na infância deste vegetariano militante, vestígios do que adiante se tornaria aversão ao consumo de animais:

“Às vezes, quando ele está no meio dos carneiros – quando eles foram reunidos para o banho de inseticida, quando estão cercados e não podem escapar –, pensa em sussurrar-lhes, avisá-los do que os espera. Mas então percebe naqueles olhos amarelos algo que o silencia: uma resignação, um conhecimento prévio não somente do que acontece aos carneiros nas mãos de Ros atrás do abrigo, mas do que os aguarda no final da longa e sedenta viagem de caminhão até a Cidade do Cabo. Eles sabem tudo, até o menor detalhe, e, no entanto, se submetem. Já calcularam o preço e estão dispostos a pagá-lo – o preço por estar na terra, o preço de se estar vivo.”
A lapidação de seu texto é fruto de uma vida dedicada ao ofício. Catedrático de universidades importantes, aos 70 anos não cessa de aprimorar a capacidade de síntese, transmitindo o que importa com o mínimo de firula, sem um minuto a perder. Realiza o que se poderia chamar de uma literatura possível. Quando terminou de ler Verão, José Gaspar me disse: “a pancada seca me acertou, de novo”. Era uma referência ao estilo cru que continua atraindo gerações de leitores.

1 Consta em romance de Níkos Kazantzákis, citado por L. F. Veríssimo em Entre grades.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Da patrulha ideológica e outras aporrinhações

Por José Gaspar


A história não cansa de mostrar que, a despeito de todo o ceticismo que reside em nós, a possibilidade de nos surpreendermos não cessa jamais. Quando o PT chegou à presidência em 2002, com todo o discurso de mudança dos alicerces da estrutura social, chegamos a acreditar que alguma coisa ia mesmo mudar, apesar de toda a reformulação adaptativa ao sistemão viciado a que o partido e seu candidato se submeteram. Aí revivemos as práticas fisiológicas e o presidencialismo de coalizão, tão conhecidos e consolidados na práxis política brasileira. Os escândalos no final do primeiro mandato de Lula fizeram muita gente desacreditar de vez nesses discursos de mudança social, normalmente identificados com o que se chama de esquerda. Toda a classe política foi parar no mesmo saco.

Em 2010, entretanto, as coisas mudaram, e vimos o renascer de uma militância aguerrida, que reescreveu a história com um tom bem mais otimista. O PT foi alçado ao posto de salvador da lavoura. Tirou o povo da miséria, com jogo de cintura. Todo governo constrói sua aceitação, sua legitimação, com base neste clamor popular em uníssono, seja ele ditatorial, de esquerda ou direita. E o governo petista foi competente na construção deste discurso, e em empulhá-lo aos militantes. Na campanha, quando manifestava meu desagrado com o discurso preponderante de sustentação do governo, quase apanhei dos intelectuais. Noites a princípio de diversão azedaram porque os caras, normalmente abertos e flexíveis, me bombardearam com estatísticas e dados oficiais que expressavam a revolução social feita pelo petismo. Na postagem anterior o Sangirardi desenvolveu melhor o assunto.

O documentário do humorista Cláudio Manoel sobre o cantor Wilson Simonal (Ninguém sabe o duro que dei), célebre vítima do patrulhamento ideológico da esquerda, tangencia o tema. Alienado das questões políticas, ele foi para a geladeira cultural por conta de uma atitude infeliz que mexeu nesse ninho de vespeiros. O sucesso estrondante de um cantor negro ingênuo e arrogante, e não filiado a nenhuma causa política ou social, concentrou ressentimento suficiente para boicotar sua arte, até o fim de sua vida, quando morreu deprimido e alcoólatra. Alheio aos temas políticos, fazia uma música que servia como instrumento ufanista nas mãos do regime, ainda que ele não tivesse controle sobre esta abordagem de seu trabalho.

Simonal, no auge do sucesso (e da ditadura militar), era um cara desorganizado quanto às suas finanças; achou que estava sendo roubado pelo seu contador, e com o rei na barriga contratou uns capangas para darem uma prensa no cara. Parece que neste período, chegou a bravatear que "era fechado com os homi" (funcionários do DOI-CODI), o que bastou para aniquilá-lo até o fim de sua vida. Após anos de enorme popularidade e shows lotados, Simonal jamais conseguiu espaço na mídia novamente, estigmatizado pela pecha de dedo-duro. Mesmo os que tinham neutralidade em relação ao cantor não lhe abriam as portas, temendo represálias.

Em entrevista ao site Globo.com, o diretor Cláudio Manoel explica o que o impressionou na história de Simonal: "o tamanho de sua queda. Ele foi um cara que inaugurou muita coisa no Brasil, inclusive o showbiz. Foi o primeiro negro sex symbol, namorado de loiras, rapper de vanguarda. E por causa de um evento nebuloso, caiu no completo ostracismo. No fim da vida, não ia mais a certos lugares para não ver as pessoas indo embora quando chegava." No documentário, Chico Anysio pergunta se "alguém conhece uma pessoa dedurada pelo Simonal".

O episódio mostra a pena dura e desproporcional que o artista sofreu ao mexer com essa força obscura que é o ressentimento da esquerda e a capacidade que ela tem de ser passional, persecutória e tacanha. Não pretendemos com isso demonizar a esquerda, afinal, somos de esquerda aqui na Tribuna, à excessão do esteta Gambetti, que só quer saber de arte, amor e putaria. Mas é a própria esquerda que se entorta quando se apresenta dogmática, inflexível, com o pus dialético da porção mais primitiva da doutrina marxista. Como virou tabu bater na esquerda, eu me lanço nesta empreitada, publicando o fragmento do poeta e médico Michel Klejnberg. As opiniões que possam ser lidas no texto dele não necessariamente refletem a opinião desta Tribuna. Tampouco entramos no mérito de julgar as pretensões judiciais dos que sofreram nas mãos do regime militar. Vale para mostrar como é fictício o despreendimento da esquerda em relação ao vil metal, pouco se importando com quem vai pagar a conta, o que ela historicamente botou na conta da direita.

Os Imaculadinhos

Por Michel Klejnberg



É a história do capoeira: eu não queria dar com o pé na cara de ninguém, mas botou a cara na minha frente...


                                                                                                                      (Ziraldo)


Ai a nossa esquerdinha fofa, a nossa esquerdinha gostosinha,
os nossos intelectuaisinhos,
os nossos heroisinhos da resistência tão combativosinhos
receberam de indenizaçãozinha da comissãozinha de anistiazinha do ministériozinho da justiçazinha um milhão vinte e sete mil trezentos e oitenta e três reais e vinte e nove centavos e um milhão duzentos e cinquenta e três mil reais e vinte e quatro centavos respectivamente.

Eles sabem que esse dinheirinho é do impostinho que é o trabalhinho que é o tempinho da vidinha das pessoinhas.

Imaginemos um país no qual tenham vivido aproximadamente cem milhões de pessoinhas durante um período de ditadura militar. Dessas, digamos que sessenta e nove mil tenham entrado com pedidos judiciais de indenização por terem sido perseguidas político/pessoalmente ou prejudicadas na sua atividade profissional de alguma forma pela atuação daquele governo ditatorial e que mais, digamos, trinta mil venham a entrar. São cem mil pessoinhas. Vezes um milhão de reais, são cem bilhões de reais que é mais do que a soma do orçamento público federal para os setores de saúde e educação no ano de 2009.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O discurso dos vencedores


Fui um dentre tantos que desacreditaram em um projeto de esquerda para o Brasil, no decorrer da adaptação do governo petista ao processo político brasileiro, a partir de 2002. Parei de acreditar na ideologia da transformação que o PT defendia. Compreendi que existia uma técnica política, um malabarismo para se manter na corda bamba do poder, que era preciso praticar para estar mandando. Eu via o PT fazendo todos aqueles acordos com o pior da classe política. Era um partido como os outros. As políticas do governo anterior, dos tucanos, não foram modificadas. Os coronéis de ficha suja do PMDB se instalaram na máquina pública como um câncer, praticando o fisiologismo que não era novidade para ninguém. Escândalos de corrupção pipocaram em série e mancharam a imagem do governo. O presidente, em seus arroubos de vaidade, parecia em alguns momentos um ditador de republiqueta.


Mas eis que começa a campanha presidencial de 2010, para que a ideologia, adormecida nestes oito anos de lulismo, despertasse gritando, como recém saída de um pesadelo. A militância do partido dos trabalhadores se organizou e construiu a base de seu discurso de sustentação, a sua versão sobre os oito anos de governo Lula. A luta continua, diz este discurso, afinal de contas alguém acreditava que íamos mudar o Brasil de uma hora para a outra, sem baixas e todo tipo de dificuldade?

Segundo esta versão, o governo Lula dirigiu a sociedade brasileira para uma fase mais otimista, com a ascensão de camada da população à classe média. Revigorou um populismo desenvolvimentista que estava fora de moda, bem diferente das cartilhas neoliberais, insensíveis com a questão social e com a distribuição de renda. Para os neopetistas, o Brasil não pode ser pensado como a Coreia do Sul, a despontar com uma injeção de gestão, mas encarado como um país africano reinado pela fome. Enquanto todos os excluídos não forem reintroduzidos na sociedade de consumo, não haverá a possibilidade de um projeto de nação. A militância que trabalhou para eleger Dilma defende a ideia de que este governo reforçou a soberania nacional, devolveu-lhe a dignidade, com o reposicionamento estratégico na organização geopolítica global.

O partido, condicionado pela atuação oposicionista, teve de adaptar-se a ser situação. Certo choque de realidade política foi impingido na mentalidade petista, ainda marcada pelo idealismo de uma mudança radical da forma de fazer política. Para além das acomodações, acordos e algumas malandragens também (ora, a causa é nobre e o importante é avançar!), foi preciso também sujar as mãos. Líderes promissores do partido acabaram se sujando na inglória, porém necessária, tarefa de operar as imundas engrenagens da máquina estatal. E o barco seguiu, vencendo a tempestade da crise americana, sem sofrer abalo.

Sendo a política a arte de conciliar interesses divergentes, é natural que os políticos se desgastem no decorrer de seus mandatos. Não foi o que aconteceu com Lula. Blindado pelos oitenta por cento de aprovação, deixa o governo com a popularidade de um popstar, emplacando como sucessora uma desconhecida que não tinha projeto pessoal de poder, que se dependesse do PT jamais teria sido a candidata.

Uma oposição careta e trapalhona 

José Serra encarnou o candidato conservador, ligado ao passado, sem projeto. Demorou demais para sair candidato, após disputa com o grupo de Aécio Neves pela candidatura, não conseguindo agregar as forças oposicionistas. Teve um vice sem expressão que apequenou a chapa. Não apresentou um programa de governo, baseando todo o discurso nas críticas a um governo que conta com expressiva aprovação popular. Sua campanha cometeu todos os erros que pode, e deveria agradecer a votação que teve. Religião e aborto foram temas que prejudicaram o candidato, que tratando deles pareceu mais demagogicamente conservador do que nunca. A raposa com cinquenta anos de vida política lendo a bíblia não convenceu ninguém. Todo mundo sabe e está escrito na sua careca que é da economia que se ocupa a atormentada mente do Serra.

Não houve estratégia definida para estruturar um discurso de afirmação dos oito anos de gestão tucana, nem de defesa das privatizações implementadas no período. O assunto foi evitado no primeiro turno. Enquanto Dilma citava orgulhosamente o presidente Lula, Serra nem tocava no nome de FHC. Com isso a candidatura do governo ganhava consistência e ia conquistando o eleitorado. Com a passagem para o segundo turno, a estratégia foi a de bruscamente se vincular ao ex-presidente FHC, o que foi feito sem firmeza, errando no timing, evidenciando o desespero. Engessado pelas orientações do marketing eleitoral, o PSDB perdeu a oportunidade de antecipar o verdadeiro debate político, sobre as reais diferenças programáticas e ideológicas com o PT. A polarização entre os dois partidos começa a tomar contornos similares aos democratas e republicanos nos EUA: parecidos, com diferenças sutis na concepção das políticas de Estado, se alternando no poder.

Ao fim destas eleições presidenciais de 2010, os tucanos ficam mesmo com o papel histórico de precursores de uma nova etapa, estabilizando a economia para que uma revolução social fosse empreendida pelo governo seguinte (ainda segundo a narrativa que a militância petista defendeu na campanha). O PSDB de Fernando Henrique e Serra acompanharia a tendência mundial de fragmentação dos chamados estados-nação, em seu movimento monetarista de integração (submissão?) à ordem global, no papel de conduzir o país ao rol das nações desenvolvidas.

Já Lula teria robustecido as instituições brasileiras e a identidade nacional. O funcionalismo público de fato foi bastante beneficiado pelo governo, a despeito de não sabermos o quanto nos custará no futuro. O PT teria um projeto de ir além de conduzir o Brasil à posição devida na economia mundial, mas de desenvolvê-lo internamente, projetando-o para ser uma potência, a exemplo da China.
Segundo o discurso que prevaleceu e deu à Dilma vinte pontos de vantagem no Rio de Janeiro, não houve aumento no gasto público, mas um crescimento natural e proporcional à hipertrofia da sociedade. Sobre a corrupção, nunca tanta gente foi presa, sinal do combate intensivo ao crime. Os escândalos se sucedem porque acabou a impunidade no Brasil.

Não tenho a mínima ideia de como avaliar se as coisas se dão da forma como apregoa este discurso, que a Tribuna ouviu de eleitores do PT. Sei que todo poder cria sua memória, seu discurso de sustentação. E que só tenho a mídia como fonte de informação para basear minha consciência política. Quanto às estatísticas, além de poderem ser usadas em qualquer contexto para corroborar quaisquer ideias e argumentos, são geridas por organismos ligados ao governo, ou politicamente interessados, de modo que não podemos deixar de desconfiar delas.

A história é contada pelos vencedores. O grupo que venceu as eleições estará no poder por pelo menos doze anos. Vamos torcer para que tenha a sensibilidade social e o objetivo maior de erradicação da pobreza, como estão dizendo por aí. A Tribuna felicita e deseja boa sorte à presidente eleita.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Pornografia de Gombrowicz

Por Leonardo Gambetti


Na quarta capa de Pornografia, do polonês Witold Gombrowicz (1904-1969), o editor não perde tempo em explicar que “o romance nada tem de propriamente pornográfico”. Compreensível cautela, pois o título pode afastar leitores que façam uma avaliação apressada do seu conteúdo. Como os livreiros tradicionais dos bairros paulistanos mais caretas, que resistiram em expor em suas vitrines o Memórias de minhas putas tristes, de Garcia Márquez. Estas coisas se passam assim mesmo, mas a rigor não seria de todo acertado afirmar que o romance não tem nada de pornográfico. Há ali uma pornografia nuclear, o embrião erótico de onde se derivam todas as variantes estéticas, imagens e cores da carne humana em sua plenitude.

Gombrowicz tem elegância em não explorar o sexo para compor a sua Pornografia. Opta por uma perspectiva primordial do desejo, que nasce antes dos desdobramentos mais identificáveis como pornográficos. Com linguagem simples e concisa, pontuada pela inteligência aguda, Gombrowicz mescla diversos gêneros, como o drama farsesco, o suspense, o thriller político, com destaque para a comédia, percepção a variar de acordo com o leitor. À medida que a narrativa transcorre, desvela um sentido profundo das secretas e imemoriais ligações entre a descoberta do pecado, o sangue e a pulsão de morte. Narrativa sobre a gênese do desejo que, impotente em se realizar, trata de recriar suas possibilidades eróticas na mente. O descortinar da possibilidade do gozo na experiência do outro no cerne da pornografia. Exibicionismo mais ou menos como o da literatura, em que a realização é imaginária, através das vidas dos personagens.

O narrador e seu amigo Fryderyk, intelectuais boêmios e ociosos, vão visitar uma propriedade rural na Polônia ocupada pelos nazistas, de propriedade de um velho aristocrata conhecido do narrador, onde vive com sua família, da qual se destacam a sua jovem filha e um jovem agregado, de mesma idade, criados juntos desde a infância. Ela está noiva de um homem mais velho, e não há nada entre ela e o rapaz. Mas a dupla de hóspedes começa a desenvolver uma espécie de fascinação pelo que entendem ser a inevitável conjunção daqueles corpos jovens, que compartilham desde a infância uma intimidade natural e aparentemente desinteressada, mas que eles entendem estar em devir para uma união inevitável, natural.

A obsessão do narrador e de seu amigo em ajudar a natureza a acasalar o parzinho é o ponto de partida do romance, que se desenvolve de forma surpreendente e termina triunfalmente com um êxtase de significados. O indomável corcel negro do desejo na juventude. O que se pode oferecer em troca da beleza da juventude, o quanto de morte pode haver no orgasmo, o quanto de vida pode haver num assassinato. O silêncio dos pactos. O vigor da imaturidade dos jovens, em sua descoberta do pecado, no ritual de entrada na “juventude adulta”, o modo já indisfarçável como seus corpos, ainda não abandonados de todo pela pureza, se insinuam ao mundo adulto. O voyerismo dos velhos, famintos de juventude. A crueldade e o sadismo da juventude, e a forma como a sua leveza pode servir à transgressão. Sua capacidade de suavizar e poetizar a trangressão, subtraindo seu peso, fazendo-a potente e até mesmo bela.


Se os dois se sentiam atraídos por aquele abismo, era exatamente porque tinham condições de saltar sobre ele. Sua leveza permitia que eles assumissem os mais sangrentos empreendimentos porque eles podiam transformá-los imediatamente em outra coisa – e a aproximação deles do crime era, na verdade, a aniquilação daquele crime – ao cometê-lo, o aniquilavam.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Tribuna conta com dois novos colaboradores

Passamos a contar com os esforços de dois novos articulistas. O esteta Leonardo Gambetti vai inaugurar e tocar a seção de literatura desta Tribuna. Escritor diletante, se lança na crítica literária, mergulhando em seu multifacetado olhar sobre a vida e a arte.

Conheci Gambetti naquelas noites agradáveis na praça Sansalva, tem uns anos. A lição do filósofo Auterives acabava lá pelas dez e meia, e o pessoal se reunia na praça para conversar e beber. Ao chegar ao centro da praça, lá estavam as pessoas quase se esparramando pelo coreto, iluminadas pela luz fria da lua. Então começava a descer o vinho, e todos falavam sem parar, de tudo, confortados por um sentimento coletivo de troca. A ida e vinda das marés, do que se passaria dentro de cada uma daquelas interioridades, em contato no campo unificado, indo ter como espuma evaporada na beira da areia com que afinal nos cobriremos.

A primeira impressão que tive de Gambetti foi de um jovem alegre e consciente das inesgotáveis possibilidades da vida, que com equilíbrio cultivava a si mesmo e a exterioridade. As rodas de que participava não se dissolviam. Na maior parte das vezes Gambetti não dizia nada, só ouvia, atentamente, e fazia perguntas, se fosse o caso de fazê-las, ou calava, se fosse o momento de calar. Seus questionamentos fugiam ao que se chama de senso comum. Apresentavam formas novas e às vezes um pouco estranhas de enxergar a trama, como ele se referiu uma vez, entre goles suaves na taça de vinho. Maneiras interessantes, práticas e positivas de pensar, e consequentemente de agir e transformar. Passava longe dos arroubos de alegria falsificada, dos que têm muito medo da própria tristeza, e tentam esconder, com a máscara de otimismo, o esmerdalhamento em que estão afundadas. Não é o caso de Gambetti, que é alegre de verdade, porque entendeu cedo algumas coisas, que normalmente as pessoas comuns levam mais tempo para entender, sendo que não são poucas as que jamais entendem.

Gambetti ouvia de tudo daqueles estudantes da filosofia, mas tinha o dom de estar com eles pactuado em uma esfera por assim dizer superior. Era como se estivesse em um plano mais limpo, uma altura não alcançada quando se fazia uso ideológico da palavra, que por vezes permeia as discussões filosóficas, artísticas e políticas, desenvolvidas ao ritmo do emborcar dos copos. E Gambetti transcendendo as trocas de opiniões, irmanado com a humanidade e ao mesmo tempo com cada um e uma, habitando uma dimensão intocada pela impotência das ideologias.

Com a cautela natural e sincera, sabe o tempo das coisas, o Gambetti, porque compreende o campo unificado, onde os ritmos são modulados, onde as frequências cruzadas precisam tentar uma resultante positiva, para que a saúde do corpo permaneça. A hora de manter, a hora de mudar, de entrar e de sair de cena (e a hora de dormir). Rege como um maestro os movimentos de aproximação ou afastamento dos objetos refletidos, a cada minuto, em sua mente curiosa, buscando o que se precisa para transformar a vida em música.

Gambetti ganhou admiradores e amigos, e eu fui um deles. Não foi fácil convencê-lo a colaborar com a Tribuna. De família muito rica, Gambetti não gosta de trabalhar. Ocupa seu tempo pensando, escrevendo, passeando, investindo na amizade e no capital erótico, no bem-estar e no cuidado com os seus. A condição final de Gambetti, para ser um colaborador da Tribuna, é a de escrever apenas quando sentir vontade...

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O jornalista José Gaspar cuidará da tradicional seção de política que vinha sendo tocada por mim. Que alívio  não precisar mais gastar meu tempo com um assunto tão chato e improdutivo. Conheço Zé Gaspar desde os remotos tempos de resistência. Sempre participativo no debate político, acho que o Zé, no fundo, nunca perdeu a perplexidade diante do funcionamento social. Quando o Zé disseca política, acho que faz para ele mesmo, como se precisasse se convencer de que não há pureza em lugar algum, ou como se esperasse achar argumentos mais otimistas, que ajudassem a suavizar a sua indignação, que mostrassem que há decência, que as boas intenções estão por aí, que não se deve de antemão fechar os olhos para elas.

Quanto a mim, fundador e proprietário desta Tribuna, escreverei apenas quando tiver vontade, inspirado pela potência libertária de Gambetti. Continuo, entretanto, atuando como editor e publicador das postagens.