quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O discurso dos vencedores


Fui um dentre tantos que desacreditaram em um projeto de esquerda para o Brasil, no decorrer da adaptação do governo petista ao processo político brasileiro, a partir de 2002. Parei de acreditar na ideologia da transformação que o PT defendia. Compreendi que existia uma técnica política, um malabarismo para se manter na corda bamba do poder, que era preciso praticar para estar mandando. Eu via o PT fazendo todos aqueles acordos com o pior da classe política. Era um partido como os outros. As políticas do governo anterior, dos tucanos, não foram modificadas. Os coronéis de ficha suja do PMDB se instalaram na máquina pública como um câncer, praticando o fisiologismo que não era novidade para ninguém. Escândalos de corrupção pipocaram em série e mancharam a imagem do governo. O presidente, em seus arroubos de vaidade, parecia em alguns momentos um ditador de republiqueta.


Mas eis que começa a campanha presidencial de 2010, para que a ideologia, adormecida nestes oito anos de lulismo, despertasse gritando, como recém saída de um pesadelo. A militância do partido dos trabalhadores se organizou e construiu a base de seu discurso de sustentação, a sua versão sobre os oito anos de governo Lula. A luta continua, diz este discurso, afinal de contas alguém acreditava que íamos mudar o Brasil de uma hora para a outra, sem baixas e todo tipo de dificuldade?

Segundo esta versão, o governo Lula dirigiu a sociedade brasileira para uma fase mais otimista, com a ascensão de camada da população à classe média. Revigorou um populismo desenvolvimentista que estava fora de moda, bem diferente das cartilhas neoliberais, insensíveis com a questão social e com a distribuição de renda. Para os neopetistas, o Brasil não pode ser pensado como a Coreia do Sul, a despontar com uma injeção de gestão, mas encarado como um país africano reinado pela fome. Enquanto todos os excluídos não forem reintroduzidos na sociedade de consumo, não haverá a possibilidade de um projeto de nação. A militância que trabalhou para eleger Dilma defende a ideia de que este governo reforçou a soberania nacional, devolveu-lhe a dignidade, com o reposicionamento estratégico na organização geopolítica global.

O partido, condicionado pela atuação oposicionista, teve de adaptar-se a ser situação. Certo choque de realidade política foi impingido na mentalidade petista, ainda marcada pelo idealismo de uma mudança radical da forma de fazer política. Para além das acomodações, acordos e algumas malandragens também (ora, a causa é nobre e o importante é avançar!), foi preciso também sujar as mãos. Líderes promissores do partido acabaram se sujando na inglória, porém necessária, tarefa de operar as imundas engrenagens da máquina estatal. E o barco seguiu, vencendo a tempestade da crise americana, sem sofrer abalo.

Sendo a política a arte de conciliar interesses divergentes, é natural que os políticos se desgastem no decorrer de seus mandatos. Não foi o que aconteceu com Lula. Blindado pelos oitenta por cento de aprovação, deixa o governo com a popularidade de um popstar, emplacando como sucessora uma desconhecida que não tinha projeto pessoal de poder, que se dependesse do PT jamais teria sido a candidata.

Uma oposição careta e trapalhona 

José Serra encarnou o candidato conservador, ligado ao passado, sem projeto. Demorou demais para sair candidato, após disputa com o grupo de Aécio Neves pela candidatura, não conseguindo agregar as forças oposicionistas. Teve um vice sem expressão que apequenou a chapa. Não apresentou um programa de governo, baseando todo o discurso nas críticas a um governo que conta com expressiva aprovação popular. Sua campanha cometeu todos os erros que pode, e deveria agradecer a votação que teve. Religião e aborto foram temas que prejudicaram o candidato, que tratando deles pareceu mais demagogicamente conservador do que nunca. A raposa com cinquenta anos de vida política lendo a bíblia não convenceu ninguém. Todo mundo sabe e está escrito na sua careca que é da economia que se ocupa a atormentada mente do Serra.

Não houve estratégia definida para estruturar um discurso de afirmação dos oito anos de gestão tucana, nem de defesa das privatizações implementadas no período. O assunto foi evitado no primeiro turno. Enquanto Dilma citava orgulhosamente o presidente Lula, Serra nem tocava no nome de FHC. Com isso a candidatura do governo ganhava consistência e ia conquistando o eleitorado. Com a passagem para o segundo turno, a estratégia foi a de bruscamente se vincular ao ex-presidente FHC, o que foi feito sem firmeza, errando no timing, evidenciando o desespero. Engessado pelas orientações do marketing eleitoral, o PSDB perdeu a oportunidade de antecipar o verdadeiro debate político, sobre as reais diferenças programáticas e ideológicas com o PT. A polarização entre os dois partidos começa a tomar contornos similares aos democratas e republicanos nos EUA: parecidos, com diferenças sutis na concepção das políticas de Estado, se alternando no poder.

Ao fim destas eleições presidenciais de 2010, os tucanos ficam mesmo com o papel histórico de precursores de uma nova etapa, estabilizando a economia para que uma revolução social fosse empreendida pelo governo seguinte (ainda segundo a narrativa que a militância petista defendeu na campanha). O PSDB de Fernando Henrique e Serra acompanharia a tendência mundial de fragmentação dos chamados estados-nação, em seu movimento monetarista de integração (submissão?) à ordem global, no papel de conduzir o país ao rol das nações desenvolvidas.

Já Lula teria robustecido as instituições brasileiras e a identidade nacional. O funcionalismo público de fato foi bastante beneficiado pelo governo, a despeito de não sabermos o quanto nos custará no futuro. O PT teria um projeto de ir além de conduzir o Brasil à posição devida na economia mundial, mas de desenvolvê-lo internamente, projetando-o para ser uma potência, a exemplo da China.
Segundo o discurso que prevaleceu e deu à Dilma vinte pontos de vantagem no Rio de Janeiro, não houve aumento no gasto público, mas um crescimento natural e proporcional à hipertrofia da sociedade. Sobre a corrupção, nunca tanta gente foi presa, sinal do combate intensivo ao crime. Os escândalos se sucedem porque acabou a impunidade no Brasil.

Não tenho a mínima ideia de como avaliar se as coisas se dão da forma como apregoa este discurso, que a Tribuna ouviu de eleitores do PT. Sei que todo poder cria sua memória, seu discurso de sustentação. E que só tenho a mídia como fonte de informação para basear minha consciência política. Quanto às estatísticas, além de poderem ser usadas em qualquer contexto para corroborar quaisquer ideias e argumentos, são geridas por organismos ligados ao governo, ou politicamente interessados, de modo que não podemos deixar de desconfiar delas.

A história é contada pelos vencedores. O grupo que venceu as eleições estará no poder por pelo menos doze anos. Vamos torcer para que tenha a sensibilidade social e o objetivo maior de erradicação da pobreza, como estão dizendo por aí. A Tribuna felicita e deseja boa sorte à presidente eleita.