quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Tribuna conta com dois novos colaboradores

Passamos a contar com os esforços de dois novos articulistas. O esteta Leonardo Gambetti vai inaugurar e tocar a seção de literatura desta Tribuna. Escritor diletante, se lança na crítica literária, mergulhando em seu multifacetado olhar sobre a vida e a arte.

Conheci Gambetti naquelas noites agradáveis na praça Sansalva, tem uns anos. A lição do filósofo Auterives acabava lá pelas dez e meia, e o pessoal se reunia na praça para conversar e beber. Ao chegar ao centro da praça, lá estavam as pessoas quase se esparramando pelo coreto, iluminadas pela luz fria da lua. Então começava a descer o vinho, e todos falavam sem parar, de tudo, confortados por um sentimento coletivo de troca. A ida e vinda das marés, do que se passaria dentro de cada uma daquelas interioridades, em contato no campo unificado, indo ter como espuma evaporada na beira da areia com que afinal nos cobriremos.

A primeira impressão que tive de Gambetti foi de um jovem alegre e consciente das inesgotáveis possibilidades da vida, que com equilíbrio cultivava a si mesmo e a exterioridade. As rodas de que participava não se dissolviam. Na maior parte das vezes Gambetti não dizia nada, só ouvia, atentamente, e fazia perguntas, se fosse o caso de fazê-las, ou calava, se fosse o momento de calar. Seus questionamentos fugiam ao que se chama de senso comum. Apresentavam formas novas e às vezes um pouco estranhas de enxergar a trama, como ele se referiu uma vez, entre goles suaves na taça de vinho. Maneiras interessantes, práticas e positivas de pensar, e consequentemente de agir e transformar. Passava longe dos arroubos de alegria falsificada, dos que têm muito medo da própria tristeza, e tentam esconder, com a máscara de otimismo, o esmerdalhamento em que estão afundadas. Não é o caso de Gambetti, que é alegre de verdade, porque entendeu cedo algumas coisas, que normalmente as pessoas comuns levam mais tempo para entender, sendo que não são poucas as que jamais entendem.

Gambetti ouvia de tudo daqueles estudantes da filosofia, mas tinha o dom de estar com eles pactuado em uma esfera por assim dizer superior. Era como se estivesse em um plano mais limpo, uma altura não alcançada quando se fazia uso ideológico da palavra, que por vezes permeia as discussões filosóficas, artísticas e políticas, desenvolvidas ao ritmo do emborcar dos copos. E Gambetti transcendendo as trocas de opiniões, irmanado com a humanidade e ao mesmo tempo com cada um e uma, habitando uma dimensão intocada pela impotência das ideologias.

Com a cautela natural e sincera, sabe o tempo das coisas, o Gambetti, porque compreende o campo unificado, onde os ritmos são modulados, onde as frequências cruzadas precisam tentar uma resultante positiva, para que a saúde do corpo permaneça. A hora de manter, a hora de mudar, de entrar e de sair de cena (e a hora de dormir). Rege como um maestro os movimentos de aproximação ou afastamento dos objetos refletidos, a cada minuto, em sua mente curiosa, buscando o que se precisa para transformar a vida em música.

Gambetti ganhou admiradores e amigos, e eu fui um deles. Não foi fácil convencê-lo a colaborar com a Tribuna. De família muito rica, Gambetti não gosta de trabalhar. Ocupa seu tempo pensando, escrevendo, passeando, investindo na amizade e no capital erótico, no bem-estar e no cuidado com os seus. A condição final de Gambetti, para ser um colaborador da Tribuna, é a de escrever apenas quando sentir vontade...

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O jornalista José Gaspar cuidará da tradicional seção de política que vinha sendo tocada por mim. Que alívio  não precisar mais gastar meu tempo com um assunto tão chato e improdutivo. Conheço Zé Gaspar desde os remotos tempos de resistência. Sempre participativo no debate político, acho que o Zé, no fundo, nunca perdeu a perplexidade diante do funcionamento social. Quando o Zé disseca política, acho que faz para ele mesmo, como se precisasse se convencer de que não há pureza em lugar algum, ou como se esperasse achar argumentos mais otimistas, que ajudassem a suavizar a sua indignação, que mostrassem que há decência, que as boas intenções estão por aí, que não se deve de antemão fechar os olhos para elas.

Quanto a mim, fundador e proprietário desta Tribuna, escreverei apenas quando tiver vontade, inspirado pela potência libertária de Gambetti. Continuo, entretanto, atuando como editor e publicador das postagens.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Estamos juntos

Acabamos de assistir ao debate da Folha dos candidatos ao governo do estado, transmitido pela Rede TV! Não é uma experiência das mais agradáveis ver o governador jantar confortavelmente seus três adversários.

Não tem para ninguém, e dois argumentos principais sustentarão esta opinião. O primeiro e mais significativo é que parece existir uma lei natural, ou espiritual, que enuncia que o discurso positivo sempre vence o negativo. Fique claro que não se trata de bem e mal, porque o discurso positivo pode estar representando o mal, e o negativo defendendo o bem. Mas quando observamos o governador defender os avanços e melhorias de seu governo – não ousamos entrar no mérito desta avaliação, pois não acompanhamos os lances comezinhos da política –, e os demais candidatos concentrados em apontar os defeitos, em dizer que está tudo uma merda, não é difícil experimentar o que a ampla maioria do eleitorado deve sentir para estar ajudando a reelegê-lo no primeiro turno. O cara faz o discurso pró-ativo, focado nas próprias realizações, não perde tempo batendo em ninguém. Porque a estrela está mesmo com ele, gostando-se ou não. Ele enche o peito e fala à vontade da “amizade” com o presidente, da proximidade com a Dilma, e repete quantas vezes puder que essa relação estreita garante mais recursos para o Rio. O discurso popular, que o povo gosta de ouvir. A campanha milionária, repleta de nomes de peso do samba e da MPB, faz a trilha para as imagens do povão risonho, sob o slogan “Estamos juntos”, elaborado com astúcia para colar na massa votante. No intervalo, um spot mostrou Lula retribuindo os elogios que recebia no debate: “As UPAs e a pacificação nas favelas foram criação do Sergio, e por isso é fundamental que ele continue”. Com isso tudo na mão, Cabral teria de fazer uma cagada muito grande para perder a reeleição.

O segundo argumento para justificar essa disputa desigual de um homem contra três, com uma vantagem que não se tem lembrança na história política recente do Rio de Janeiro, é o domínio que o governador tem das técnicas de comunicação política. É um orador convincente, seguro, conhecedor de todos os truques do palanque. Malandro nato, como antigamente, como seu pai, um parasita, um achacador. São detalhes simples que podem passar despercebidos, mas que fazem uma diferença crucial, ainda que invisível. Na hora do minuto de agradecimento, enquanto os três se apressavam em descer o cacete em tudo, Cabral sem pressa se dizia admirador do mediador Kennedy Alencar, agradecia aos organizadores, e voltava a listar as supostas conquistas de sua gestão. Preenche milimetricamente seu tempo de fala, com ritmo indo num crescendo e fechando no último segundo com frases de efeito, positivas e pró-ativas. Os outros candidatos não conseguiam se articular dentro do tempo, ou devolviam dezenas de segundos de volta aos adversários. E não tinham muito a fazer a não ser críticas, passando uma imagem negativa para o eleitor menos instruído e mais instintivo, que escolhe seu candidato com base no que entende serem suas qualidades pessoais.

Sabemos todos que o governador é um gangster. Enriqueceu rápido na vida pública, fazendo os piores pactos, com o que há de mais atrasado e mafioso, ascendendo como chefe de uma quadrilha na Alerj, praticando chantagem, extorsão, peculato. Mas infelizmente é um dos políticos mais habilidosos de sua geração, cheio de carisma e dotado de uma capacidade notável de não brigar e acumular aliados, característica importante para sobreviver no cenário político hodierno.

Jefferson Moura (PSOL) é um canastrão, artificial nos cacoetes mimetizados dos mesmos chefões que ele critica. Interpreta canhestramente um estado de indignação, dando a impressão de que sonha em ter o mesmo naipe do governador. Moura é falso, mentiroso e antipático. Sem sucesso na tentativa de dar uma de Plínio, protagonizou o momento mais pitoresco do debate. Criticando a promiscuidade das alianças e a degradação das identidades programáticas, pediu a Cabral para enumerar os 16 partidos de sua coligação. Na resposta, o governador ignorou o pedido e disse que a coalizão era sinal da boa aceitação que tinha entre os partidos. Ao tomar de novo a palavra, Moura denunciou com uma revolta afetada: “o governador não sabe quais são os partidos que o apoiam! Não respondeu a minha pergunta!”. E Cabral, respondendo, arrancou risos da plateia dizendo que achou que Moura, em sua réplica, afinal enumeraria os tais 16 partidos.

O inexpressivo candidato Peregrino não merece o gasto da nossa pena. Dele a Tribuna teve o trabalho de anotar uma pérola, que dividimos com o leitor em primeira mão: “O casal Garotinho tem ideias que podem construir a felicidade do nosso povo”.

E Gabeira, candidato apoiado pela Tribuna, não tem mesmo vocação para a disputa pelo poder executivo. Repete sempre as mesmas coisas, naquele jeitão meio sequelado... Estamos fodidos.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sobre o debate da Folha com os presidenciáveis

É ingênuo acreditar que o debate da televisão é espaço de discussão de propostas, como se diz. Debate não é lugar para fazer proposta de governo, porque proposta de governo não se faz em um minuto, com réplica e tréplica, e porque sempre recai na simplificação demagógica do discurso eleitoreiro. Como se pode discutir propostas dentro da veloz e entrecortada lógica televisiva?

O debate serve para a observação, além do traquejo e da capacidade oratória dos candidatos, do sangue-frio e do jogo de cintura tão necessários a um chefe de governo.

O debate promovido pela Folha e transmitido domingo na Rede TV! foi intenso na troca de acusações entre os dois principais candidatos, que quebraram o pau, remoendo a pendenga entre petistas e tucanos. Serra lembrou o novo caso envolvendo Erenice Guerra, ministra da casa civil e cria política da Dilma, por permitir o tráfico de influência de seu filho dentro do governo, reclamou da quebra ilegal de sigilo da sua filha, lembrou do caso dos “aloprados” e disse que a casa civil era um foco de corrupção no governo petista, associando a Dilma ao Zé Dirceu.

Serra, o mais experiente em campanhas, tem a manha de gerir seus tempos de fala, indo sempre até o final, sem desperdiçar um segundo, diferente de Marina e Plínio, que algumas vezes deixaram buracos em suas falas, devolvendo a palavra aos adversários. Em muitos momentos mostrou certo desespero ao ficar revisitando o noticiário dos escândalos no governo, que se estivesse lendo manchetes, tentando impressionar os eleitores mais anti-petistas.

A Dilma nos debates é totalmente artificial. Ainda fica muito nervosa, se embola com as palavras, gagueja. Ainda não tem muita intimidade com os palanques, mas já vai pegar o jeito da coisa, porque está com toda cara de que vai ganhar a eleição.

Plínio é espirituoso porque não tem nada a perder, trabalha para garantir o espaço do seu partido, seus deputados e outras lideranças que defendem teorias marxistas para salvar o Brasil. O deboche do Plínio quebra a artificialidade da petista e do tucano, servindo para acordar a audiência quando está prestes a adormecer. 

Mas se o radical calasse, a audiência adormecida poderia ter um pesadelo coletivo, em que uma Dilma bruta e desfigurada capitanearia um stalinismo tecnocrático, associado ao controle do núcleo duro do partido, substituindo a utopia ineficiente dos discursos contra o sistema dos tempos de militância, pelo mergulho profundo no exercício do aparelhamento estatal e no pragmatismo da guerrilha burocrática da política. Ela seria um monstro mecânico, construído com aço subsidiado da Gerdau, com tecnologia de águas profundas da Petrobras, financiado pelo Banco do Brasil, a mando de Lula.

Em nenhum momento, entretanto, Plínio conseguiu desestabilizar os candidatos, que ficavam risonhos e aliviados quando o velho comunista intercedia com seus gracejos.

Marina Silva, apesar de seu discurso politicamente correto, não parece estar tendo muito êxito na sua estratégia paz e amor. Deixou o arsenal crítico e a radicalidade de esquerda para o Plínio e adotou uma espécie de neutralidade zen. Parece estar pavimentando o caminho para ser uma alternativa segura e confiável ao petismo, trabalhando de olho em 2014.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Mané ou sagaz?

Assisti a uma palestra sobre cultura organizacional, que tratou dos impactos da cultura dos países nas suas organizações. Quando se discorreu sobre a cultura organizacional brasileira, não pude deixar de ver suas marcas na prática mais corrente da nossa política. Analisar o que nos é próximo e familiar, com as lentes da alteridade, pode iluminar novos olhares, pontos de vista, leituras.

Entre os traços tipicamente brasileiros mencionados, a heteronomia, a desconfiança com a lei. A lei a que se deve submeter é do outro, pertencente a um domínio exterior, estranho à sua razão. A obediência está mais ligada ao respeito à autoridade e ao temor da sanção, do que à adesão ao princípio fundante da lei. Como no caso do sujeito que não assalta o banco porque teme ser preso, ferido ou morto, e não porque considera errado roubar. Ele poderá argumentar que há corrupção grossa na elaboração das leis que delimitam a margem de manobra destas instituições financeiras, ou que os legisladores são ladrões piores do que os assaltantes das agências. Poderá citar aquela frase do Brecht, que diz que roubar um banco é pouco se comparado ao crime de abrir um banco, para justificar que só não assalta um banco porque faltam colhões para tal. No Brasil, o fascínio pela esperteza define com nitidez as figuras do otário e do malandro.

Quando a imprensa noticiou os escândalos envolvendo o banqueiro Daniel Dantas, uma pessoa que o conhecia, e que não quis se identificar, disse algo mais ou menos assim sobre ele, em entrevista a um jornal: “se ele souber que uma mesa que custa 100 reais pode ser adquirida por 90, não importa a que expediente precise recorrer, ele fará, pelo gosto da manobra esperta e virtuosa, na zona onde os limites das regras não estão tão definidos”.

E o Opportunity, como tantos outros predadores do mercado, operam no limite da legalidade. Por isso ganham tanto dinheiro, porque encaram a parada como um jogo de ganhar e perder. Se entre a composição de um produto está uma determinada substância cancerígena, os executivos perspicazes vão usar a quantidade limite permitida por lei, e que se foda. Considerações de teor humanista, ético ou qualquer outra besteira ideológica são postas de lado pelos gaviões de alta performance nos negócios. O mesmo raciocínio impera na política.

Nas ruas de Botafogo há algumas intervenções com a imagem do Daniel Dantas, com a inscrição que serve de questionamento aos brasileiros: Mané ou Sagaz?

Um segundo traço de nossa cultura organizacional, que fica destacado na política brasileira, é o valor quase sagrado das alianças. O vale tudo para evitar conflitos, na maciota, como se diz. Os mais hábeis relacionalmente levam muita vantagem quando o jogo é praticado sob este axioma. Fique claro que não estamos falando do jogo de cintura, de capacidade e abertura para negociar diferenças e interesses, mas da submissão dos princípios à união de forças visando maior ganho de poder. As regras são menos consideradas do que as intenções políticas, e quanto mais estapafúrdia é a aliança, e maiores os abismos ignorados em seu nome, mais glorificado é o seu mentor, e mais louvada a sua capacidade. Aécio Neves e Cabral Filho, conhecidos pelos seus nós em pingos d’água, não nos deixam mentir.

Os apoios são negociados escancaradamente em troca de vantagens imediatas, inexiste o pudor de tentar ao menos simular um interesse público. A coisa é feita às claras, e antes que seja apresentado o argumento de que as alianças controem ambientes favoráveis à colaboração, não é isso que acontece quando não é o interesse público que está guiando os processos. Quando essas coalizões estapafúrdias conquistam o governo, logo começam a se engalfinhar por cargos, por espaço, e aí começam as brigas e o ressentimento. A política é cheia de histórias assim.

Um terceiro traço seria a descrença na meritocracia, com as crenças concentradas nas circunstâncias. No Brasil existe a desconfiança com o sucesso. Se as leis são feitas para burlar e o jeitinho e as alianças que de fato contam, as perguntas correntes são: o que esse cara fez para chegar lá? Para quem se vendeu? Em que esquema entrou para ter isso tudo? A que interesse escuso se associou? Fez que tipo de aliança espúria?

As três características superficialmente tratadas aqui, se combinam entre si e com outros traços, produzindo um desequilíbrio profundo na estrutura social brasileira, com consequências como: a predominância da visão de curto prazo (o imediatismo dos ciclos eleitorais também contribui para isso), personalismo (a descrença e o desapreço com os sistemas e as leis reforça a personalização do poder), nepotismo e aumento dos custos de transação, controle e monitoramento (decorrentes do ambiente de baixa confiança), dificuldade de agir com autonomia, alta distância de poder, baixa cooperação espontânea.

Estas características de nossa cultura organizacional são potencializadas no cenário de alta competitividade da política, e de tão arraigadas às vezes se passam por naturais ou inevitáveis. Não são.