sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Mané ou sagaz?

Assisti a uma palestra sobre cultura organizacional, que tratou dos impactos da cultura dos países nas suas organizações. Quando se discorreu sobre a cultura organizacional brasileira, não pude deixar de ver suas marcas na prática mais corrente da nossa política. Analisar o que nos é próximo e familiar, com as lentes da alteridade, pode iluminar novos olhares, pontos de vista, leituras.

Entre os traços tipicamente brasileiros mencionados, a heteronomia, a desconfiança com a lei. A lei a que se deve submeter é do outro, pertencente a um domínio exterior, estranho à sua razão. A obediência está mais ligada ao respeito à autoridade e ao temor da sanção, do que à adesão ao princípio fundante da lei. Como no caso do sujeito que não assalta o banco porque teme ser preso, ferido ou morto, e não porque considera errado roubar. Ele poderá argumentar que há corrupção grossa na elaboração das leis que delimitam a margem de manobra destas instituições financeiras, ou que os legisladores são ladrões piores do que os assaltantes das agências. Poderá citar aquela frase do Brecht, que diz que roubar um banco é pouco se comparado ao crime de abrir um banco, para justificar que só não assalta um banco porque faltam colhões para tal. No Brasil, o fascínio pela esperteza define com nitidez as figuras do otário e do malandro.

Quando a imprensa noticiou os escândalos envolvendo o banqueiro Daniel Dantas, uma pessoa que o conhecia, e que não quis se identificar, disse algo mais ou menos assim sobre ele, em entrevista a um jornal: “se ele souber que uma mesa que custa 100 reais pode ser adquirida por 90, não importa a que expediente precise recorrer, ele fará, pelo gosto da manobra esperta e virtuosa, na zona onde os limites das regras não estão tão definidos”.

E o Opportunity, como tantos outros predadores do mercado, operam no limite da legalidade. Por isso ganham tanto dinheiro, porque encaram a parada como um jogo de ganhar e perder. Se entre a composição de um produto está uma determinada substância cancerígena, os executivos perspicazes vão usar a quantidade limite permitida por lei, e que se foda. Considerações de teor humanista, ético ou qualquer outra besteira ideológica são postas de lado pelos gaviões de alta performance nos negócios. O mesmo raciocínio impera na política.

Nas ruas de Botafogo há algumas intervenções com a imagem do Daniel Dantas, com a inscrição que serve de questionamento aos brasileiros: Mané ou Sagaz?

Um segundo traço de nossa cultura organizacional, que fica destacado na política brasileira, é o valor quase sagrado das alianças. O vale tudo para evitar conflitos, na maciota, como se diz. Os mais hábeis relacionalmente levam muita vantagem quando o jogo é praticado sob este axioma. Fique claro que não estamos falando do jogo de cintura, de capacidade e abertura para negociar diferenças e interesses, mas da submissão dos princípios à união de forças visando maior ganho de poder. As regras são menos consideradas do que as intenções políticas, e quanto mais estapafúrdia é a aliança, e maiores os abismos ignorados em seu nome, mais glorificado é o seu mentor, e mais louvada a sua capacidade. Aécio Neves e Cabral Filho, conhecidos pelos seus nós em pingos d’água, não nos deixam mentir.

Os apoios são negociados escancaradamente em troca de vantagens imediatas, inexiste o pudor de tentar ao menos simular um interesse público. A coisa é feita às claras, e antes que seja apresentado o argumento de que as alianças controem ambientes favoráveis à colaboração, não é isso que acontece quando não é o interesse público que está guiando os processos. Quando essas coalizões estapafúrdias conquistam o governo, logo começam a se engalfinhar por cargos, por espaço, e aí começam as brigas e o ressentimento. A política é cheia de histórias assim.

Um terceiro traço seria a descrença na meritocracia, com as crenças concentradas nas circunstâncias. No Brasil existe a desconfiança com o sucesso. Se as leis são feitas para burlar e o jeitinho e as alianças que de fato contam, as perguntas correntes são: o que esse cara fez para chegar lá? Para quem se vendeu? Em que esquema entrou para ter isso tudo? A que interesse escuso se associou? Fez que tipo de aliança espúria?

As três características superficialmente tratadas aqui, se combinam entre si e com outros traços, produzindo um desequilíbrio profundo na estrutura social brasileira, com consequências como: a predominância da visão de curto prazo (o imediatismo dos ciclos eleitorais também contribui para isso), personalismo (a descrença e o desapreço com os sistemas e as leis reforça a personalização do poder), nepotismo e aumento dos custos de transação, controle e monitoramento (decorrentes do ambiente de baixa confiança), dificuldade de agir com autonomia, alta distância de poder, baixa cooperação espontânea.

Estas características de nossa cultura organizacional são potencializadas no cenário de alta competitividade da política, e de tão arraigadas às vezes se passam por naturais ou inevitáveis. Não são.

Um comentário:

Tonho disse...

O texto fala sobre manobras e crenças tipicamente brasileiras, mas poderíamos mudar o título e colocar dois conceitos que vem de fora e já colaram; "winner or looser".

Abs