Na quarta capa de Pornografia, do polonês Witold Gombrowicz (1904-1969), o editor não perde tempo em explicar que “o romance nada tem de propriamente pornográfico”. Compreensível cautela, pois o título pode afastar leitores que façam uma avaliação apressada do seu conteúdo. Como os livreiros tradicionais dos bairros paulistanos mais caretas, que resistiram em expor em suas vitrines o Memórias de minhas putas tristes, de Garcia Márquez. Estas coisas se passam assim mesmo, mas a rigor não seria de todo acertado afirmar que o romance não tem nada de pornográfico. Há ali uma pornografia nuclear, o embrião erótico de onde se derivam todas as variantes estéticas, imagens e cores da carne humana em sua plenitude.
Gombrowicz tem elegância em não explorar o sexo para compor a sua Pornografia. Opta por uma perspectiva primordial do desejo, que nasce antes dos desdobramentos mais identificáveis como pornográficos. Com linguagem simples e concisa, pontuada pela inteligência aguda, Gombrowicz mescla diversos gêneros, como o drama farsesco, o suspense, o thriller político, com destaque para a comédia, percepção a variar de acordo com o leitor. À medida que a narrativa transcorre, desvela um sentido profundo das secretas e imemoriais ligações entre a descoberta do pecado, o sangue e a pulsão de morte. Narrativa sobre a gênese do desejo que, impotente em se realizar, trata de recriar suas possibilidades eróticas na mente. O descortinar da possibilidade do gozo na experiência do outro no cerne da pornografia. Exibicionismo mais ou menos como o da literatura, em que a realização é imaginária, através das vidas dos personagens.
O narrador e seu amigo Fryderyk, intelectuais boêmios e ociosos, vão visitar uma propriedade rural na Polônia ocupada pelos nazistas, de propriedade de um velho aristocrata conhecido do narrador, onde vive com sua família, da qual se destacam a sua jovem filha e um jovem agregado, de mesma idade, criados juntos desde a infância. Ela está noiva de um homem mais velho, e não há nada entre ela e o rapaz. Mas a dupla de hóspedes começa a desenvolver uma espécie de fascinação pelo que entendem ser a inevitável conjunção daqueles corpos jovens, que compartilham desde a infância uma intimidade natural e aparentemente desinteressada, mas que eles entendem estar em devir para uma união inevitável, natural.
A obsessão do narrador e de seu amigo em ajudar a natureza a acasalar o parzinho é o ponto de partida do romance, que se desenvolve de forma surpreendente e termina triunfalmente com um êxtase de significados. O indomável corcel negro do desejo na juventude. O que se pode oferecer em troca da beleza da juventude, o quanto de morte pode haver no orgasmo, o quanto de vida pode haver num assassinato. O silêncio dos pactos. O vigor da imaturidade dos jovens, em sua descoberta do pecado, no ritual de entrada na “juventude adulta”, o modo já indisfarçável como seus corpos, ainda não abandonados de todo pela pureza, se insinuam ao mundo adulto. O voyerismo dos velhos, famintos de juventude. A crueldade e o sadismo da juventude, e a forma como a sua leveza pode servir à transgressão. Sua capacidade de suavizar e poetizar a trangressão, subtraindo seu peso, fazendo-a potente e até mesmo bela.
Se os dois se sentiam atraídos por aquele abismo, era exatamente porque tinham condições de saltar sobre ele. Sua leveza permitia que eles assumissem os mais sangrentos empreendimentos porque eles podiam transformá-los imediatamente em outra coisa – e a aproximação deles do crime era, na verdade, a aniquilação daquele crime – ao cometê-lo, o aniquilavam.
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