quarta-feira, 18 de maio de 2011

A Náusea


Como gostaria de lhe dizer que o enganam, que ele faz o jogo dos importantes. Profissionais da experiência? Arrastaram suas vidas num torpor, meio adormecidos, se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos ao acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De quando em quando, apanhados num rodamoinho, se debateram sem compreender o que lhes acontecia. Tudo que ocorreu à sua volta começou e terminou fora de sua vista; longas formas obscuras, acontecimentos que vinham de longe roçaram-nos rapidamente e, quando eles quiseram olhar, tudo já terminara. 
Bonito

E depois, por volta dos quarenta anos, batizam suas pequenas obstinações e alguns provérbios com o nome de experiência, começam a se fazer de distribuidores automáticos: dois níqueis na fenda da esquerda e eis que saem anedotas embrulhadas em papel prateado; dois níqueis na fenda da direita e recebem-se preciosos conselhos que grudam nos dentes como caramelos pegajosos. Também eu, por esse mesmo processo, poderia ser convidado pelas pessoas e estas se diriam, entre elas, que sou um grande viajante diante do Eterno.

Sabido
 




terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Cenas da vida na província

Há anos admirador da obra do sul-africano John Maxwell Coetzee, só agora li Infância, o primeiro volume da trilogia Cenas da vida na província, após ter lido os dois seguintes, Juventude e Verão, que completam esta ficção autobiográfica que apresenta o personagem, de mesmo nome do autor, em três momentos diferentes de sua vida. Como na viagem de Caim do último ato de criação de José Saramago, seu colega de Nobel, o personagem do autor é mostrado em tempos distintos, ao longo dos três volumes.
Em Infância, entre outros pequenos dramas passados na cidade de Worcester, África do Sul, acompanhamos o mergulho do menino na introspecção, na descoberta de si mesmo como diferença no mundo, da dura necessidade de negociação com o meio e todos os problemas decorrentes, enfrentados por qualquer criança. Sua dificuldade em retribuir a incondicionalidade do amor materno; seu pai preguiçoso e ineficiente; seu medo de se relacionar com os meninos africânderes (os Coetzee, apesar da origem africânder, falam inglês em casa e não possuem raízes na cultura africânder). Os fantasmas do menino são como ecos da segregação, que é o pano de fundo desta narrativa que, aparentemente despretensiosa, sugere outro tempo. Um tempo de recusa, de espera, de desconstrução. Tempo preenchido pela sucessão de atos de amenidade, necessária à manutenção das relações de alteridade, em termos mais ou menos civilizados. No segundo volume, Juventude, o jovem Coetzee, solitário e complexado, vai trabalhar como programador em Londres. Acompanhamos o seu envolvimento com a poesia e a literatura, seus momentos de melancolia, seus questionamentos, sua dificuldade em se relacionar com as mulheres, sua solidão.

O último volume, Verão, é o mais interessante e esquisito. O consagrado escritor J. M. Coetzee já faleceu e sua vida está sendo pesquisada por um biógrafo, que entrevista pessoas que dela participaram em diversos momentos, principalmente mulheres. O personagem vai sendo revelado através de comentários soltos nas entrevistas, em sua maioria depreciativos da sua pessoa e às vezes até de sua obra. A identidade investigada, tecida por diversas vozes, surge fragmentada para o leitor. Apesar de seguir uma tendência em moda na literatura contemporânea — a exploração das possibilidades criadas pela queda da barreira que separa a ficção da realidade —, o romance não deixa de ser inovador. Pode sugerir uma ironia com o culto às celebridades, com o sistema que vampiriza as vidas e personalidades dos notáveis. Alguns dos diálogos entre o biógrafo e as entrevistadas são bem interessantes, maracados por silêncios, mal entendidos, antipatia.

Não há qualquer informação sobre a trajetória que o autor seguiu rumo aos salões da consagração artística, do sucesso de público e crítica. A questão da sua fama e de seu sucesso não é tocada. Paira como uma sombra, quase irreal, existindo apenas como a razão de ser das entrevistas. E os entrevistados demolem, um a um, a possível expectativa de uma construção de grandeza, de talento, de sabedoria. Vemos um homem falho e algumas vezes até mesmo fraco, retratado pelo olhar de pessoas com quem teve relações que possivelmente não terminaram bem. A parte final do romance resgata a costumeira fórmula de narração em uma pseudo terceira pessoa, que destila um sentimento de dureza e perplexidade diante dos conflitos da vida.


Ao relatar seu cotidiano abafado, apagado, marcado por pequenas precariedades — os fatos desagradáveis do nosso amontoado de dias passados, que passam e ficam amassados em um canto qualquer de nós — o autor não demonstra preocupação em trazer o leitor para junto de si. A simplicidade aparente da superfície do seu texto encobre conflitos e repressão. Como se uma camada de silêncio separasse o texto do papel, espaços vazios por onde a narrativa delineia seus contornos, dobras e nós, e para onde ela escoa quando terminamos as corrosivas páginas finais de Verão.

Coetzee escolhe as palavras com cuidado, e delas extrai o sentido mais preciso, ordenando-as da maneira mais adequada, na confecção de um texto extraordinariamente enxuto, cuja outra face é a do indizível, onde as palavras “nada podem dizer, pois nada mais são do que as grades negras de uma prisão onde o espírito grita para ser ouvido”1. O autor não se propõe a recriar este domínio, ou a buscar uma transfiguração radical da linguagem. Sua escrita é em uma linguagem pobre, rarefeita. Admirador dos mestres russos, com eles talvez tenha aprendido a aplicar a força nas palavras, aproveitá-las da forma mais racional e racionada. É como se as palavras não fossem abundantes, mas cultivadas com trabalho duro no terreno pobre da linguagem, seco como as paisagens de seus livros. Com sua pena faz pesar a intensidade nas palavras, extraindo delas o que a linguagem não pode alcançar. Nada parece saído de impulso, não há aleatoriedade, o texto nasce do cultivo na aridez. Nas frases curtas, nos fechamentos de capítulos, fica a impressão de que não havia outra forma de expressão, como se nenhuma outra ordem das palavras fosse possível.

A visão do autor sobre o mundo é tão implacável que ele parece tentar suavizá-la, livrá-la o tanto quanto possível de marcações ideológicas. A realidade de seu mundo é concreta demais para devaneios linguísticos ou soluções variantes do niilismo. A negação e a demolição cedem lugar aos ecos de culpa e temor diante da inevitabilidade do futuro, no vazio do espaço.

Na infância deste vegetariano militante, vestígios do que adiante se tornaria aversão ao consumo de animais:

“Às vezes, quando ele está no meio dos carneiros – quando eles foram reunidos para o banho de inseticida, quando estão cercados e não podem escapar –, pensa em sussurrar-lhes, avisá-los do que os espera. Mas então percebe naqueles olhos amarelos algo que o silencia: uma resignação, um conhecimento prévio não somente do que acontece aos carneiros nas mãos de Ros atrás do abrigo, mas do que os aguarda no final da longa e sedenta viagem de caminhão até a Cidade do Cabo. Eles sabem tudo, até o menor detalhe, e, no entanto, se submetem. Já calcularam o preço e estão dispostos a pagá-lo – o preço por estar na terra, o preço de se estar vivo.”
A lapidação de seu texto é fruto de uma vida dedicada ao ofício. Catedrático de universidades importantes, aos 70 anos não cessa de aprimorar a capacidade de síntese, transmitindo o que importa com o mínimo de firula, sem um minuto a perder. Realiza o que se poderia chamar de uma literatura possível. Quando terminou de ler Verão, José Gaspar me disse: “a pancada seca me acertou, de novo”. Era uma referência ao estilo cru que continua atraindo gerações de leitores.

1 Consta em romance de Níkos Kazantzákis, citado por L. F. Veríssimo em Entre grades.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Da patrulha ideológica e outras aporrinhações

Por José Gaspar


A história não cansa de mostrar que, a despeito de todo o ceticismo que reside em nós, a possibilidade de nos surpreendermos não cessa jamais. Quando o PT chegou à presidência em 2002, com todo o discurso de mudança dos alicerces da estrutura social, chegamos a acreditar que alguma coisa ia mesmo mudar, apesar de toda a reformulação adaptativa ao sistemão viciado a que o partido e seu candidato se submeteram. Aí revivemos as práticas fisiológicas e o presidencialismo de coalizão, tão conhecidos e consolidados na práxis política brasileira. Os escândalos no final do primeiro mandato de Lula fizeram muita gente desacreditar de vez nesses discursos de mudança social, normalmente identificados com o que se chama de esquerda. Toda a classe política foi parar no mesmo saco.

Em 2010, entretanto, as coisas mudaram, e vimos o renascer de uma militância aguerrida, que reescreveu a história com um tom bem mais otimista. O PT foi alçado ao posto de salvador da lavoura. Tirou o povo da miséria, com jogo de cintura. Todo governo constrói sua aceitação, sua legitimação, com base neste clamor popular em uníssono, seja ele ditatorial, de esquerda ou direita. E o governo petista foi competente na construção deste discurso, e em empulhá-lo aos militantes. Na campanha, quando manifestava meu desagrado com o discurso preponderante de sustentação do governo, quase apanhei dos intelectuais. Noites a princípio de diversão azedaram porque os caras, normalmente abertos e flexíveis, me bombardearam com estatísticas e dados oficiais que expressavam a revolução social feita pelo petismo. Na postagem anterior o Sangirardi desenvolveu melhor o assunto.

O documentário do humorista Cláudio Manoel sobre o cantor Wilson Simonal (Ninguém sabe o duro que dei), célebre vítima do patrulhamento ideológico da esquerda, tangencia o tema. Alienado das questões políticas, ele foi para a geladeira cultural por conta de uma atitude infeliz que mexeu nesse ninho de vespeiros. O sucesso estrondante de um cantor negro ingênuo e arrogante, e não filiado a nenhuma causa política ou social, concentrou ressentimento suficiente para boicotar sua arte, até o fim de sua vida, quando morreu deprimido e alcoólatra. Alheio aos temas políticos, fazia uma música que servia como instrumento ufanista nas mãos do regime, ainda que ele não tivesse controle sobre esta abordagem de seu trabalho.

Simonal, no auge do sucesso (e da ditadura militar), era um cara desorganizado quanto às suas finanças; achou que estava sendo roubado pelo seu contador, e com o rei na barriga contratou uns capangas para darem uma prensa no cara. Parece que neste período, chegou a bravatear que "era fechado com os homi" (funcionários do DOI-CODI), o que bastou para aniquilá-lo até o fim de sua vida. Após anos de enorme popularidade e shows lotados, Simonal jamais conseguiu espaço na mídia novamente, estigmatizado pela pecha de dedo-duro. Mesmo os que tinham neutralidade em relação ao cantor não lhe abriam as portas, temendo represálias.

Em entrevista ao site Globo.com, o diretor Cláudio Manoel explica o que o impressionou na história de Simonal: "o tamanho de sua queda. Ele foi um cara que inaugurou muita coisa no Brasil, inclusive o showbiz. Foi o primeiro negro sex symbol, namorado de loiras, rapper de vanguarda. E por causa de um evento nebuloso, caiu no completo ostracismo. No fim da vida, não ia mais a certos lugares para não ver as pessoas indo embora quando chegava." No documentário, Chico Anysio pergunta se "alguém conhece uma pessoa dedurada pelo Simonal".

O episódio mostra a pena dura e desproporcional que o artista sofreu ao mexer com essa força obscura que é o ressentimento da esquerda e a capacidade que ela tem de ser passional, persecutória e tacanha. Não pretendemos com isso demonizar a esquerda, afinal, somos de esquerda aqui na Tribuna, à excessão do esteta Gambetti, que só quer saber de arte, amor e putaria. Mas é a própria esquerda que se entorta quando se apresenta dogmática, inflexível, com o pus dialético da porção mais primitiva da doutrina marxista. Como virou tabu bater na esquerda, eu me lanço nesta empreitada, publicando o fragmento do poeta e médico Michel Klejnberg. As opiniões que possam ser lidas no texto dele não necessariamente refletem a opinião desta Tribuna. Tampouco entramos no mérito de julgar as pretensões judiciais dos que sofreram nas mãos do regime militar. Vale para mostrar como é fictício o despreendimento da esquerda em relação ao vil metal, pouco se importando com quem vai pagar a conta, o que ela historicamente botou na conta da direita.

Os Imaculadinhos

Por Michel Klejnberg



É a história do capoeira: eu não queria dar com o pé na cara de ninguém, mas botou a cara na minha frente...


                                                                                                                      (Ziraldo)


Ai a nossa esquerdinha fofa, a nossa esquerdinha gostosinha,
os nossos intelectuaisinhos,
os nossos heroisinhos da resistência tão combativosinhos
receberam de indenizaçãozinha da comissãozinha de anistiazinha do ministériozinho da justiçazinha um milhão vinte e sete mil trezentos e oitenta e três reais e vinte e nove centavos e um milhão duzentos e cinquenta e três mil reais e vinte e quatro centavos respectivamente.

Eles sabem que esse dinheirinho é do impostinho que é o trabalhinho que é o tempinho da vidinha das pessoinhas.

Imaginemos um país no qual tenham vivido aproximadamente cem milhões de pessoinhas durante um período de ditadura militar. Dessas, digamos que sessenta e nove mil tenham entrado com pedidos judiciais de indenização por terem sido perseguidas político/pessoalmente ou prejudicadas na sua atividade profissional de alguma forma pela atuação daquele governo ditatorial e que mais, digamos, trinta mil venham a entrar. São cem mil pessoinhas. Vezes um milhão de reais, são cem bilhões de reais que é mais do que a soma do orçamento público federal para os setores de saúde e educação no ano de 2009.