Em Infância, entre outros pequenos dramas passados na cidade de Worcester, África do Sul, acompanhamos o mergulho do menino na introspecção, na descoberta de si mesmo como diferença no mundo, da dura necessidade de negociação com o meio e todos os problemas decorrentes, enfrentados por qualquer criança. Sua dificuldade em retribuir a incondicionalidade do amor materno; seu pai preguiçoso e ineficiente; seu medo de se relacionar com os meninos africânderes (os Coetzee, apesar da origem africânder, falam inglês em casa e não possuem raízes na cultura africânder). Os fantasmas do menino são como ecos da segregação, que é o pano de fundo desta narrativa que, aparentemente despretensiosa, sugere outro tempo. Um tempo de recusa, de espera, de desconstrução. Tempo preenchido pela sucessão de atos de amenidade, necessária à manutenção das relações de alteridade, em termos mais ou menos civilizados. No segundo volume, Juventude, o jovem Coetzee, solitário e complexado, vai trabalhar como programador em Londres. Acompanhamos o seu envolvimento com a poesia e a literatura, seus momentos de melancolia, seus questionamentos, sua dificuldade em se relacionar com as mulheres, sua solidão.
O último volume, Verão, é o mais interessante e esquisito. O consagrado escritor J. M. Coetzee já faleceu e sua vida está sendo pesquisada por um biógrafo, que entrevista pessoas que dela participaram em diversos momentos, principalmente mulheres. O personagem vai sendo revelado através de comentários soltos nas entrevistas, em sua maioria depreciativos da sua pessoa e às vezes até de sua obra. A identidade investigada, tecida por diversas vozes, surge fragmentada para o leitor. Apesar de seguir uma tendência em moda na literatura contemporânea — a exploração das possibilidades criadas pela queda da barreira que separa a ficção da realidade —, o romance não deixa de ser inovador. Pode sugerir uma ironia com o culto às celebridades, com o sistema que vampiriza as vidas e personalidades dos notáveis. Alguns dos diálogos entre o biógrafo e as entrevistadas são bem interessantes, maracados por silêncios, mal entendidos, antipatia.
Não há qualquer informação sobre a trajetória que o autor seguiu rumo aos salões da consagração artística, do sucesso de público e crítica. A questão da sua fama e de seu sucesso não é tocada. Paira como uma sombra, quase irreal, existindo apenas como a razão de ser das entrevistas. E os entrevistados demolem, um a um, a possível expectativa de uma construção de grandeza, de talento, de sabedoria. Vemos um homem falho e algumas vezes até mesmo fraco, retratado pelo olhar de pessoas com quem teve relações que possivelmente não terminaram bem. A parte final do romance resgata a costumeira fórmula de narração em uma pseudo terceira pessoa, que destila um sentimento de dureza e perplexidade diante dos conflitos da vida.
Ao relatar seu cotidiano abafado, apagado, marcado por pequenas precariedades — os fatos desagradáveis do nosso amontoado de dias passados, que passam e ficam amassados em um canto qualquer de nós — o autor não demonstra preocupação em trazer o leitor para junto de si. A simplicidade aparente da superfície do seu texto encobre conflitos e repressão. Como se uma camada de silêncio separasse o texto do papel, espaços vazios por onde a narrativa delineia seus contornos, dobras e nós, e para onde ela escoa quando terminamos as corrosivas páginas finais de Verão.
Coetzee escolhe as palavras com cuidado, e delas extrai o sentido mais preciso, ordenando-as da maneira mais adequada, na confecção de um texto extraordinariamente enxuto, cuja outra face é a do indizível, onde as palavras “nada podem dizer, pois nada mais são do que as grades negras de uma prisão onde o espírito grita para ser ouvido”1. O autor não se propõe a recriar este domínio, ou a buscar uma transfiguração radical da linguagem. Sua escrita é em uma linguagem pobre, rarefeita. Admirador dos mestres russos, com eles talvez tenha aprendido a aplicar a força nas palavras, aproveitá-las da forma mais racional e racionada. É como se as palavras não fossem abundantes, mas cultivadas com trabalho duro no terreno pobre da linguagem, seco como as paisagens de seus livros. Com sua pena faz pesar a intensidade nas palavras, extraindo delas o que a linguagem não pode alcançar. Nada parece saído de impulso, não há aleatoriedade, o texto nasce do cultivo na aridez. Nas frases curtas, nos fechamentos de capítulos, fica a impressão de que não havia outra forma de expressão, como se nenhuma outra ordem das palavras fosse possível.
A visão do autor sobre o mundo é tão implacável que ele parece tentar suavizá-la, livrá-la o tanto quanto possível de marcações ideológicas. A realidade de seu mundo é concreta demais para devaneios linguísticos ou soluções variantes do niilismo. A negação e a demolição cedem lugar aos ecos de culpa e temor diante da inevitabilidade do futuro, no vazio do espaço.
Na infância deste vegetariano militante, vestígios do que adiante se tornaria aversão ao consumo de animais:
“Às vezes, quando ele está no meio dos carneiros – quando eles foram reunidos para o banho de inseticida, quando estão cercados e não podem escapar –, pensa em sussurrar-lhes, avisá-los do que os espera. Mas então percebe naqueles olhos amarelos algo que o silencia: uma resignação, um conhecimento prévio não somente do que acontece aos carneiros nas mãos de Ros atrás do abrigo, mas do que os aguarda no final da longa e sedenta viagem de caminhão até a Cidade do Cabo. Eles sabem tudo, até o menor detalhe, e, no entanto, se submetem. Já calcularam o preço e estão dispostos a pagá-lo – o preço por estar na terra, o preço de se estar vivo.”A lapidação de seu texto é fruto de uma vida dedicada ao ofício. Catedrático de universidades importantes, aos 70 anos não cessa de aprimorar a capacidade de síntese, transmitindo o que importa com o mínimo de firula, sem um minuto a perder. Realiza o que se poderia chamar de uma literatura possível. Quando terminou de ler Verão, José Gaspar me disse: “a pancada seca me acertou, de novo”. Era uma referência ao estilo cru que continua atraindo gerações de leitores.
1 Consta em romance de Níkos Kazantzákis, citado por L. F. Veríssimo em Entre grades.
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