quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Da patrulha ideológica e outras aporrinhações

Por José Gaspar


A história não cansa de mostrar que, a despeito de todo o ceticismo que reside em nós, a possibilidade de nos surpreendermos não cessa jamais. Quando o PT chegou à presidência em 2002, com todo o discurso de mudança dos alicerces da estrutura social, chegamos a acreditar que alguma coisa ia mesmo mudar, apesar de toda a reformulação adaptativa ao sistemão viciado a que o partido e seu candidato se submeteram. Aí revivemos as práticas fisiológicas e o presidencialismo de coalizão, tão conhecidos e consolidados na práxis política brasileira. Os escândalos no final do primeiro mandato de Lula fizeram muita gente desacreditar de vez nesses discursos de mudança social, normalmente identificados com o que se chama de esquerda. Toda a classe política foi parar no mesmo saco.

Em 2010, entretanto, as coisas mudaram, e vimos o renascer de uma militância aguerrida, que reescreveu a história com um tom bem mais otimista. O PT foi alçado ao posto de salvador da lavoura. Tirou o povo da miséria, com jogo de cintura. Todo governo constrói sua aceitação, sua legitimação, com base neste clamor popular em uníssono, seja ele ditatorial, de esquerda ou direita. E o governo petista foi competente na construção deste discurso, e em empulhá-lo aos militantes. Na campanha, quando manifestava meu desagrado com o discurso preponderante de sustentação do governo, quase apanhei dos intelectuais. Noites a princípio de diversão azedaram porque os caras, normalmente abertos e flexíveis, me bombardearam com estatísticas e dados oficiais que expressavam a revolução social feita pelo petismo. Na postagem anterior o Sangirardi desenvolveu melhor o assunto.

O documentário do humorista Cláudio Manoel sobre o cantor Wilson Simonal (Ninguém sabe o duro que dei), célebre vítima do patrulhamento ideológico da esquerda, tangencia o tema. Alienado das questões políticas, ele foi para a geladeira cultural por conta de uma atitude infeliz que mexeu nesse ninho de vespeiros. O sucesso estrondante de um cantor negro ingênuo e arrogante, e não filiado a nenhuma causa política ou social, concentrou ressentimento suficiente para boicotar sua arte, até o fim de sua vida, quando morreu deprimido e alcoólatra. Alheio aos temas políticos, fazia uma música que servia como instrumento ufanista nas mãos do regime, ainda que ele não tivesse controle sobre esta abordagem de seu trabalho.

Simonal, no auge do sucesso (e da ditadura militar), era um cara desorganizado quanto às suas finanças; achou que estava sendo roubado pelo seu contador, e com o rei na barriga contratou uns capangas para darem uma prensa no cara. Parece que neste período, chegou a bravatear que "era fechado com os homi" (funcionários do DOI-CODI), o que bastou para aniquilá-lo até o fim de sua vida. Após anos de enorme popularidade e shows lotados, Simonal jamais conseguiu espaço na mídia novamente, estigmatizado pela pecha de dedo-duro. Mesmo os que tinham neutralidade em relação ao cantor não lhe abriam as portas, temendo represálias.

Em entrevista ao site Globo.com, o diretor Cláudio Manoel explica o que o impressionou na história de Simonal: "o tamanho de sua queda. Ele foi um cara que inaugurou muita coisa no Brasil, inclusive o showbiz. Foi o primeiro negro sex symbol, namorado de loiras, rapper de vanguarda. E por causa de um evento nebuloso, caiu no completo ostracismo. No fim da vida, não ia mais a certos lugares para não ver as pessoas indo embora quando chegava." No documentário, Chico Anysio pergunta se "alguém conhece uma pessoa dedurada pelo Simonal".

O episódio mostra a pena dura e desproporcional que o artista sofreu ao mexer com essa força obscura que é o ressentimento da esquerda e a capacidade que ela tem de ser passional, persecutória e tacanha. Não pretendemos com isso demonizar a esquerda, afinal, somos de esquerda aqui na Tribuna, à excessão do esteta Gambetti, que só quer saber de arte, amor e putaria. Mas é a própria esquerda que se entorta quando se apresenta dogmática, inflexível, com o pus dialético da porção mais primitiva da doutrina marxista. Como virou tabu bater na esquerda, eu me lanço nesta empreitada, publicando o fragmento do poeta e médico Michel Klejnberg. As opiniões que possam ser lidas no texto dele não necessariamente refletem a opinião desta Tribuna. Tampouco entramos no mérito de julgar as pretensões judiciais dos que sofreram nas mãos do regime militar. Vale para mostrar como é fictício o despreendimento da esquerda em relação ao vil metal, pouco se importando com quem vai pagar a conta, o que ela historicamente botou na conta da direita.

Um comentário:

Eduardo Viana disse...

Patrulhamento ideológico foi uma coisa que sempre existiu e, creio, sempre existirá. Há períodos na história em que a radicalização chega a fazer algum sentido e chega a ser até perdoável. Quando um sujeito se faz passar por amigo da ditadura, faz sentido que os opositores deste regime coloquem-no na geladeira.

Não é o caso de hoje em dia. Vivemos em uma democracia plena. Escolhemos nossos mandatários e falamos o que queremos. As diferenças entre os últimos governos (PSDB e PT) não foram tão significativas assim. Não houve mudanças radicais nos serviços de saúde ou de educação. O mercado de capitais, o setor bancário e as empresas continuaram funcionando da mesmíssima maneira. Dizer o contrário ou é ignorância ou é má fé. Desta forma, pessoas sensatas deveriam respeitar as pequenas divergências entre os que se posicionaram de um lado ou de outro na eleição. Mas os patrulheiros de hoje não são pessoas sensatas porque são crédulas demais para o serem.

Nunca antes na história deste país a máquina de propaganda do governo (ou melhor, de um partido) foi tão eficiente! (Isto provavelmente não é verdade: Getúlio Vargas também soube usá-la bem. Mas a frase de efeito até que era boa para encerrar este comentário.)